professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio *

A mídia noticia dois casos de justiça tardia que elevam o nível da esperança nossa de cada dia. Os protagonistas são um jornalista e um padre. O jornalista Antonio Pimenta Neves, réu confesso de assassinato, foi preso após onze anos. O padre Júlio Lancelotti, que lutava para provar sua inocência há quatro anos, foi finalmente inocentado.

Já faz tanto tempo… mas no coração de João Gomide, pai de Sandra, a dor queima viva e hemorrágica como no primeiro dia. Sandra partiu para o haras e ali mesmo, em meio aos cavalos que tanto amava, foi morta com dois tiros nas costas. Pimenta Neves, o ex-chefe e depois namorado, muitos anos mais velho que a moça, não aceitava a ruptura que o fim do namoro traria. Sandra caiu ao chão e seu sangue foi bebido pela terra de Ibiúna.

João Gomide e a mulher lutaram o quanto puderam para ver o assassino da filha preso. Pimenta Neves, influente e com uma boa rede de relações, muniu-se de competentes advogados e conseguiu recorrer uma e muitas vezes até que finalmente na última terça feira foi preso e condenado a pagar indenização aos pais da vítima. Com a saúde abalada, fragilizado pela idade, João Gomide não sente mais ódio nem alimenta desejos de vingança. A falta da filha dói no fundo do peito e pesa como sombra de tristeza sobre sua velhice que imaginava alegre e calma, no convívio familiar. Não deseja mal ao homem que destruiu seu futuro. Apenas se alegra com a justiça acontecida e espera poder viver os anos que lhe restam em paz.

Os moradores de rua e menores infratores de São Paulo conhecem bem o Padre Júlio, anjo da guarda de suas vidas e apóstolo de suas causas desde muito tempo. Nomeado pelo então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns vigário episcopal do povo da rua, Padre Júlio podia ser visto uma e outra vez denunciando ameaças de extermínio, acompanhando situações de sofrimento e perigo extremos, agindo aqui e ali para defender os direitos dos últimos excluídos da sociedade.

A notícia de que estava vivendo a dolorosíssima situação de ser vítima de extorsão por um daqueles a quem mais ajudou caiu como uma bomba em meio a todos os que o admirávamos, a ele e a seu evangélico trabalho. Acossado há anos, Pe. Julio finalmente – com apoio de Dom Odilo Scherer, atual arcebispo de São Paulo – procurou a polícia. E do dia para a noite, o sacerdote cuja rotina era trabalhar com o povo da rua e cuidar da mãe idosa que com ele residia, viu-se envolvido em infernal torvelinho de acusações e linchamento moral. Exposto na mídia, desacreditado no trabalho que fazia, vasculhado pela justiça, viveu uma autêntica via-crucis. Com a reputação comprometida e arranhada, sob suspeita de todos inclusive de certos segmentos da Igreja, Pe. Julio recolheu-se a um discreto silêncio.

Em 2007, seus detratores foram inocentados por falta de provas. Porém, há pouco tempo cometeram o erro de novamente procurar o padre para ameaçá-lo. Não sabiam – nem agressor nem vítima – que “no meio da rua havia uma câmera, havia uma câmera no meio da rua”. O delegado, avisado, requereu as imagens e condenou o agressor a sete anos de prisão. Pe. Julio finalmente vê a verdade vir à tona e trazer à luz sua inocência. Sem ódio no coração, espera que agora acreditem nele e em seu testemunho. E sofre a perda da mãe que, idosa, faleceu devido à dor que experimentava pelo sofrimento do filho.

Para João Gomide e sua esposa, que apalpam o vazio da alegre presença de Sandra em sua casa; para Júlio, que declara haver aprendido que não há amor sem dor, o acontecer da justiça, ainda que tardio, traz alívio e esperança de poder viver em paz e sem sobressaltos.

Para nós, fica a lição de que a justiça humana é lenta e morosa e, muitas vezes, tardia. Quem devolverá a João a presença da filha? Quem devolverá a Júlio integralmente a tranquilidade com que exercia seu ministério antes deste episódio? No entanto, quando acontece, traz esperança de que a impunidade nem sempre fique com a última palavra.

Em todo caso, mesmo quando a justiça humana falha, a justiça divina não só não falha como não é apenas retributiva, punindo culpados e resgatando inocentes. Ela é, sim, restaurativa, a todos restaurando pelo mistério sem lógica de um amor incondicional. Mesmo através da dor e da desventura, esse amor brilha e revela nossa fragilidade entretecida com a dignidade de sermos filhos de Deus.

* A escritora é autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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