7 de agosto de 2011
A memória nos sempre é algo estranho. É espantoso como, a partir de um fato, somos reportados a outro, longínquo, que nem sabíamos mais que existia em nossas concatenações e pensamentos. David Hume se debruçou sabre a forma como as idéias se concatenam, mas se perderia, por certo, para explicar a situação por que passei. Vamos a ela.
De certa feita, esperando o almoço, resolvi deitar-me por algum tempo em urna rede armada na varanda. Bastaram-me não mais que duas ou três balançadas e, subitamente, veio-me ao recheio do crânio um grande fluxo de reminiscências. Vi-me novamente com seis ou sete anos de idade, na fazenda Galeão, onde, até certo momento de minha vida, passei todas as férias da infância.
Embora, sanguineamente falando, seja legítimo sertanejo, devo esclarecer desde já que, depois que cresci, nunca mais fui dado às dormidas em rede. Talvez tenha sofrido mutação quanto a gene concernente a esse ponto, de forma que aquilo me passou a ser objeto alheio e estranho para alguém que, embora com muitas horas de dormida nas redes das fazendas, cresceu mesmo na retidão literal dos colchões ortopédicos.
A volta a rede quando já velho, mesmo de forma ocasional, foi certamente o que me levou aonde não estava: ao passado. Estranho é que, quando pensamos o passado da infância, ele quase que é mais do que o presente, pois além da sensação de realidade, traz também uma nostalgia especial, difícil de explicar, senão por uma imagem: é aquela saudade que nos faz sorrir sem perceber, até que, quando percebemos o sorriso no rosto, surpreendemo-nos, pois estávamos rindo, sem saber. Aí sorrimos de novo e somos quase que pegos por nova surpresa, o que só não ocorre porque uma sensação de que isso seria de alguma forma demasiadamente incompatível com a nossa racionalidade nos impede e já nos coloca à face a expressão sisuda com que os adultos devem – pelo menos, pensam que devem – tratar assuntos tão profundos.
Quanto às minhas lembranças, reitero que lá no Galeão, na casagrande da referida fazenda, onde se agrupavam os quase sem-número de primos e amigos para brincarem durante todo o período de férias, a rede era opção obrigatória para as crianças. Deitar em rede, naquela situação, era privilégio que nos dava a novidade, o inesperado, a imaginação. A rede era como um helicóptero ou uma nave dessas que se atribuem aos extraterrenos. A rede também era uma fortaleza contra as possíveis almas, que, segundo a narrativa dos caçadores do alto sertão, perambulavam durante a noite na escuridão da casa-grande.
Lembro-me que a rede, para as crianças na fazenda, também emoldurava o teto durante a noite e, dependendo da chuva que caísse do lado de fora, as sensações da visão do teto altíssimo da casa-grande – com suas telhas antigas, pesadas, escuras e misteriosas -, somavam-se aos sons da água caindo em enxurradas e dos trovões, ao clarão dos raios e, assim, juntando tudo isso sobre as nossas cabeças e corpos, proporcionava-nos uma experiência única: a de que há muito a conhecer, verdadeiramente.
Creio que na vida adulta, embora a situação não tenha mudado muito, as pessoas nunca voltam a sentir o fascínio estético que provoca a inocência, a aparente insipiência, transfiguradas em quase inculpabilidade. As pessoas nunca voltam a sentir o prazer de entender que o mundo é tão misterioso e complexo que, na escala do conhecimento possível, o que sabemos na fase adulta não é mais do que sabemos na infância.
O homem adulto, ensimesmado, reduz o mundo às armações de seus óculos e determina que tudo o que estiver fora delas perca o interesse ou a importância. Na casa-grande, a rede não limitava o nosso pensamento, mas, paradoxalmente, nos protegia para que pudéssemos pensar mais.
De repente, escuto uma voz doce: era a minha esposa me chamando para o almoço. Levantei-me e, quando havia dado uns dois ou três passos, resolvi por um ou outro motivo – que me faz preguiça de analisar – olhar para a rede do alpendre que ficara atrás. Senti em relação a mim mesmo uma forte decepção: por mais que tentasse, não conseguia ver nada senão um pano esquisito e indeciso pendurado por armadores em duas paredes perpendiculares. Alisei, nervosamente, os fios brancos dos meus cabelos e fui almoçar… Por medo, nunca mais pensei nisso.
Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro ImageminAção – Contos do Sertão, da Cidade e do Cais.
Ilustração de Leandro Garcia criada especialmente para o conto
* * Tassos Lycurgo é professor da UFRN
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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