Guardo em meu laptop um texto de Pablo Richard, datado dia 24 de abril de 2017 e intitulado La Biblia no está amenazada por la Arqueologia. Foi publicado na rede da Ameríndia (www.amerindiaenlared.org), na América Latina. Parece que foi igualmente publicado em veículos de comunicação na Espanha e pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais, Brasil, mas disso não tenho as referências. O texto original deve encontrar-se nos arquivos do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI) em San José de Costa Rica.
Gostaria de comentá-lo, pois toca em questões que, em meu entender, merecem ser debatidas: (1) como ler a Bíblia em tempos de acelerados trabalhos arqueológicos em Israel e na Palestina?; (2) como ler a Bíblia em tempos de filosofia linguística?; (3) como ler a Bíblia em tempos de fundamentalismo galopante? Embora o texto de Pablo só contemple o primeiro desses questionamentos, quer me parecer que se aplica, em seu cerne, aos dois restantes. O embate diz respeito à leitura bíblica nos dias de hoje.
Limito-me aqui a comentar um trecho do mencionado texto:
José Maria Vigil…nos cita (dois) textos do autor Finkelstein, tirados de seu livro ‘A Bíblia desenterrada’. Ambas as citações escolhidas por Vigil mostram um conhecimento arqueológico respeitável, mas com grande desconhecimento hermenêutico das ciências bíblicas. A Bíblia cria gêneros literários próprios, como o uso de mitos, tradições e lendas autónomas… Constroem-se ‘paradigmas arqueológicos’ que ameaçam as ciências exegéticas modernas. As descobertas arqueológicas são muito importantes, devemos conhecê-las e tê-las como referência, mas criar ‘paradigmas arqueológicos’ como indispensáveis, para interpretar a Bíblia, é um fundamentalismo cientista, que manifesta muita ignorância da exegese científica moderna da Bíblia.
Até aqui o texto de Pablo. Quem são as duas pessoas mencionadas, José Maria Vigil e Israel Finkelstein? O primeiro, nascido em Zaragoza, Espanha, em 1946, é sacerdote claretiano, atua desde 1980 na América Latina, acompanhou – durante anos – as lutas e sonhos de Dom Pedro Casaldáliga e vive atualmente no Panamá. Desde 1987 participa da EATWOT (Ecumenical Association of Third World Theologians, em portugês ASETT, ou seja, Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo). Escritor profícuo e inovador, ele luta por ‘novos paradigmas’, como a interculturalidade, o ‘pos-teísmo’ e a nova epistemologia. Fala na necessidade de se ‘desconstruir’ um imaginário cristão de muitos séculos, em vista à construção de um novo, em bases diferentes. Mas faz questão de dizer que sua proposta não é ‘destrutiva’, mas ‘desconstrutiva’. Ou seja, ele propõe a construção de um novo imaginário, já que o velho não é mais aceitável.
Israel Finkelstein, o segundo nome mencionado por Pablo, é um arqueólogo judeu, participante da ‘nova arqueologia’ em territórios israelenses e palestinos. Enquanto, durante muito tempo, a arqueologia serviu para provar que ‘a Bíblia tinha razão’, essa ‘nova arqueologia’ demonstra, com dados sempre mais convincentes, que ‘a Bíblia não tinha razão’. Em 2018, a Editora Vozes, de Petrópolis, publicou o livro mais conhecido de Finkelstein: A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica do antigo Israel e das origens de seus textos sagrados (a edição original, em inglês, é de 2001). Nessa edição, o autor se explica: O objetivo desse livro é contar a história do antigo Israel e do nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, a perspectiva arqueológica. Queremos separar história e lenda. Mediante a evidência de descobertas recentes, construiremos uma nova história do antigo Israel…Contudo, nosso propósito, no final das contas, não é a mera desconstrução. É compartilhar as noções arqueológicas mais recentes não só sobre ‘quando’, mas também sobre ‘por que’ a Bíblia foi escrita e ainda tem toda essa força (Prólogo p. 13, repetido na Contracapa).
A controvérsia se abre com a reação de Pablo Richard contra o que ele chama ‘paradigmas arqueológicos’ que ameaçam as ciências exegéticas modernas. Para que possamos formar uma opinião a respeito dessa afirmação, proponho que demos a palavra aos três que entram no embate: Finkelstein, Richard e Vigil.
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Finkelstein.
Nos ‘Agradecimentos iniciais’ do livro acima apresentado, Finkelstein escreve: A despeito das paixões suscitadas por esse assunto, acreditamos que uma reavaliação de escavações mais antigas e mais recentes deixaram claro que os especialistas têm de abordar os problemas das origens bíblicas e da sociedade israelita antiga a partir de uma perspectiva totalmente nova…Queremos reconstruir uma história muito diferente do antigo Israel (p. 5). E, no Prólogo do mesmo livro: A Bíblia é um magnífico produto da imaginação humana; A saga histórica contada na Bíblia não foi uma revelação miraculosa, mas o produto brilhante da imaginação humana; A Bíblia é uma obra-prima literária (p. 11).
Até uns cinquenta anos atrás, Finkelstein lembra, as escavações realizadas em sítios mencionados na Bíblia serviam basicamente para provar que a Bíblia tinha razão (como reza o título do famoso livro de Werner Keller, 1956). Elas costumavam ser financiadas por instituições religiosas ou pelo Estado de Israel. Mas hoje, a Palestina está sendo exaustivamente escavada (por vezes em mais de dez estratos, como em Jericó, por exemplo), e isso oferece à arqueologia a possibilidade de contar a história dos povos bíblicos com uma autoridade que excede a de textos escritos por não ficar sujeita a imaginações. Ele afirma: um simples ‘óstracon’ (pedaço de antigos vasos ou jarros quebrados, com palavras gravadas) pode ganhar uma autoridade impressionante, pois fala por si.
Acontece que a ‘autoridade arqueológica’, em muitos casos, contradiz o que se lê na Bíblia. As consequências são enormes. Cai o mito do ‘povo eleito’, de um ‘povo de Deus’, diferente dos demais, guiado por Ihwh. Cai o mito de Abraão e dos patriarcas, a história da conquista de Canaã pelos Israelitas. Aparece um povo hebreu comum, cuja história é igual à dos demais povos da região e da época. Os israelitas não vieram de fora, sempre viveram na Palestina. Não formam um povo imigrante, liderado por Ihwh. Como acontece com os demais povos, sua história é feita do chão de cada dia, da luta pela sobrevivência. Com isso estamos fora do ‘grande relato’, que se inicia com a história de Adão e Eva e só termina com a ‘consumação dos séculos’, fora do universo das ‘grandes verdades’.
Os posicionamentos de Finkelstein não caem do céu. As atuais descobertas arqueológicas fazem parte de uma tradição de quase quatro séculos, da qual o filósofo judeu-holandês Baruch Spinoza, do século XVII,
É um dos principais expoentes. Spinoza foi o primeiro a afirmar que os cinco primeiros livros bíblicos, o Pentateuco, que costumavam ser atribuídos a Moisés, são na realidade elaborações oriundas de letrados reunidos em torno do Templo de Jerusalém, no final do século VI aC, com o propósito de evitar a dispersão que tinha facilitado a invasão babilônica e provocado o exílio da intelectualidade hebraica para a capital de um Império estrangeiro. Esses intelectuais, estimulados por Esdras, entenderam que era urgente criar um sentimento nacional unificado e congregar as doze tribos de Israel, divididas entre si, num povo unido em torno daquele Templo. De volta à terra natal após o exílio babilônico, esses intelectuais hebreus perceberam que ‘a união faz a força’ e que a divisão existente entre as doze tribos (umas de Israel, outras de Judá) facilitava invasões estrangeiras.
Eis a situação: havia dez tribos no Norte e duas tribos no Sul. Populações pequenas, continuamente expostas a pressões por parte de grandes Impérios da região, como Babilônia, Egito e Pérsia, sempre à procura de expansão. Então, os letrados de Jerusalém foram à cata de narrativas orais, que circulavam em lugares de antiquíssima visitação popular, como Hebron, Betel ou Siquém (nota: a Wikipedia, na Internet, informa: ‘evidências arqueológicas indicam que essa cidade foi destruída e reconstruída até 22 vezes, antes de seu desaparecimento final em 200 dC’), e que guardavam memórias de um passado mítico, em torno de figuras como Abraão, Isaac, Jacó (os ‘patriarcas’). A intuição genial desses letrados consistia em compreender que esses mitos podiam servir de cimento de uma tão desejada união nacional e se tornar um escudo contra eventuais novas agressões por parte de impérios vizinhos. Tratava-se, pois de resgatar, compilar, interpretar e finalmente descrever a vinda de Deus a Israel, contida em histórias populares.
A pressão política externa apelou para a apresentação de um só Deus, Ihwh, a substituir os diversos deuses das tribos formadas em torno de nomes como Israel e Judá. Deuses como El, Ba’al, etc. Na promulgação, igualmente mítica, de Dez Mandamentos revelados a Moisés por esse ‘novo’ Deus, ele se apresentou como todo-poderoso, transcendente, invisível, legislador e juiz, com caraterísticas de um soberano do Oriente Médio. A imagem de um Ihwh ‘cósmico’, capaz de reunir populações dispersas, estava em forte contraste com os anteriores deuses ‘locais’. A meta era a unificação num só ‘povo de Deus’. Um povo, uma lei, um estado.
É desse modo que se elaborou, entre o final do século VI e o início século II aC, a Bíblia que conhecemos e que constitui um impressionante documento teológico-pedagógico, uma teologia da libertação ‘avant la lettre’. Pois sua finalidade patente, na época de sua composição, consistia em formar um povo que se diferenciasse dos chamados ‘pagãos’, ou seja – concretamente – dos povos do Canaã e da Samaria, e que fosse suficiente forte para se libertar de pressões externas. Com o correr dos tempos, a façanha dos intelectuais legados ao Templo de Jerusalém foi imitada por outras gerações, nas mais diversas circunstâncias.
Enfim, a Bíblia constitui um dos fenômenos mais impressionantes da história humana, pois demonstra que é possível, por meio de uma literatura (ou pela reunião de diversas literaturas), moldar um povo e formar identidades por tantos e tantos séculos (por bem ou por mal, como sabemos pela história de Israel depois de 1947). A originalidade da literatura bíblica consiste no fato que ela é feita de narrativas populares e retrabalhadas por intelectuais. Essa relação orgânica constitui sua originalidade, pois, na maioria dos casos, literatura erudita e popular constituem dois parques separados, dois universos. Para entender a Bíblia, precisa mergulhar no universo imaginário popular, que está na origem das narrativas.
Com a atual supremacia da cultura ocidental sobre o mundo, a Bíblia é conhecida, superficialmente, por quase todos os habitantes da terra. Estranho destino da memória de um pequeno povo do Oriente Médio. Hoje, pessoas espalhadas pelo mundo inteiro já ouviram falar algo, mesmo que apenas vagamente, acerca de Abraão pai da fé, Isaac filho do riso, Jacó lutador com Deus, José mediador, Davi vencedor de Golias, Salomão rei sábio, Josué general, Elias profeta destemido, Daniel visionário, Ezequiel combatente, Isaías poeta, Jeremias anunciador de calamidades, Samuel profeta e sacerdote. Samsão é o forte, Judite, a esperta, Jonas, o covarde, Jô, o questionador, Rute, a fiel, Tobias, o cuidadoso, Ester, a corajosa. Finalmente Jesus, o maior dos profetas, faz uma releitura de toda a tradição anterior a partir da imagem de Deus Pai.
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Pablo Richard.
Antes de dar a palavra a Pablo, eu me junto às numerosas pessoas que, em algum momento, conviveram com ele ou o conheceram por ocasião de cursos ou escritos, e se manifestaram por ocasião de seu recente falecimento. Tive o privilégio de trabalhar longos anos com Pablo no Centro de Estudos da História da Igreja latino-americana (CEHILA).
Mas vamos ao caso. Como se pode verificar no texto acima citado, Pablo é taxativo: ‘os novos paradigmas arqueológicos destroem a fé dos pobres’. Seria uma questão de fé. Essa afirmação reabre um antigo debate sobre ‘ciência e fé’, sedimentação de uma evolução que comento adiante.
Em seu texto do 24 de abril de 2017, Pablo rememora o ano (1969-1970) em que estudou na ‘Escola Bíblica de Jerusalém’, onde teve como mestre o Padre dominicano Alain de Vaux, praticante de estudos arqueólogos na época. Ele evoca também os novos espaços, em termos de leitura bíblica, abertos pelo Concílio Vaticano II e escreve: (esse Concílio) abriu uma porta fechada durante mais de 400 anos. A abertura se deu especialmente com a Constituição ‘Dei Verbum’, de 18/11/1965. Esse documento devolveu à ciência exegética bíblica, especialmente católica, a capacidade hermenêutica que não lhe era reconhecida desde o Concílio de Trento (1545-1563). Um novo documento, ‘Interpretação da Bíblia na Igreja’ (2005), aprofundou a importância do método histórico-crítico.
Tenho por mim que um livro inovador, em termos de exegese, redigido por Pablo, tem como título Apocalipse: reconstrução da esperança (Petrópolis, Vozes, 1996). Um livro de leitura bíblica, que abandona o tradicional painel de uma ‘apocalipse’ no fim dos tempos, relacionando o texto com experiências de comunidades cristãs no tempo presente. Trata-se de uma reconstrução da esperança da comunidade em tempos de caos e exclusão. Eis a grande novidade da leitura bíblica de Pablo Richard: partir da situação em que se encontram as comunidades eclesiais de base na América Latina. Palavras como ‘apocalipse’, ‘quatro cavaleiros’, ‘sétimo selo’, ‘sétima trombeta’, ‘sétima taça’, ‘mulher que pisa sobre a besta’, ‘mostro que persegue a mulher’, ‘besta que surge do mar’, ‘falso profeta’, ‘meretriz’, ‘anjo poderoso’, ‘voz que sai do céu’, ‘anjo poderoso’, ‘cavalo branco’, ‘espada na boca’, ‘grande banquete de Deus’, ‘reino dos mil anos’, ‘nova Jerusalém’, ‘árvores da vida’, tudo isso encontra aplicação na realidade vivida pelo Povo de Deus da atualidade. Assim como os cristãos do tempo de João enfrentaram o Império romano (a ‘besta’), assim os de hoje, na América Latina, enfrentam o Império americano. As impressionantes imagens do Apocalipse de João passam a funcionar dentro de uma narrativa de resistência e libertação. Pablo não se detém com especulações sobre eventuais evocações históricas escondidas atrás daquelas imagens. Livre como um novelista ou romancista. Ele intui que algo une, entre si, um alemão que lê os Contos dos irmãos Grimm, um italiano que lê o Decameron de Boccacio, um inglês que assiste a um drama de Shakespeare, um espanhol que segue as peripécias de Dom Quixote, um francês que lê À Procura do Tempo perdido de Proust, um russo que lê O Idiota de Dostojevski ou um brasileiro que lê As memórias de Brás Cuba de Machado de Assis. Ele sabe que esses leitores, essas leitoras, não estão interessados em saber se a história que estão lendo ‘aconteceu verdadeiramente’ ou acontecerá um dia. Estão, antes, interessados/as em dinamizar sentimentos e anseios, alimentar sonhos, fortalecer compromissos.
É precisamente isso que Pablo intenta quando comenta o Apocalipse de João: reconstruir a esperança, combater o desânimo, dinamizar energias. Para ele, a Bíblia não serve para funcionar apenas em liturgias e pregações nas igrejas ou ainda vegetar em páginas de bíblias de cores desbotadas e palavras gastas pelo tempo (palavras de Leonardo Boff), mas para transportar seus leitores e suas leitoras a um terreno em que Deus se revela.
Contudo, essa contribuição – por valorosa que seja – não toca na questão aqui em pauta. É forçoso reconhecer que o trabalho exegético de Paulo revela um modo de se praticar a leitura bíblica sem atentar para as novidades científicas trazidas nos últimos decênios, principalmente em campos arqueológicos e linguísticos. Aliás, nesse ponto, Pablo segue uma linha de leitura até hoje vigente entre muitos exegetas e teólogos latino-americanos. Uma linha que desconhece os contributos científicos da atualidade ou simplesmente passa por cima deles. Nisso, ele se mostra – em consonância com não poucos companheiros e companheiras – herdeiro de um persistente passado eclesiástico e isso se revela antes de modo emocional que racional. Pergunto eu: pode ser diferente?
Durante séculos, o instituto eclesiástico reagiu de forma nervosa diante da tradição de leitura bíblica nas trilhas de Spinoza e colegas. Uma reação largamente emocional. Dono multissecular da Bíblia, esse instituto se opôs a qualquer tentativa de se mexer com o modo dogmático em que ele costumava apresentar a Bíblia. Não permitiu que se discutisse de que modo a extraordinária riqueza de metáforas, símbolos, parábolas e visões da Bíblia ficou sendo ‘engarrafada’ em fórmulas dogmáticas, na base de um elaborado cálculo anti-herético. Ninguém podia nem de longe mexer com o Símbolo da Fé cristã, promulgado pela longínqua Assembleia Episcopal de Nicéia, no ano 325 dC, quando as impressionantes imagens do Evangelho de João (a Palavra de Deus desce do céu à terra, divulga a mensagem de um Deus Pai e volta ao céu, depois de ter deixado na terra o Espírito Santo) foram traduzidas em dogmas.
A reação diante de uma nova leitura bíblica, já iniciada pelos humanistas do século XV e fortemente impulsionada por Spinoza no século XVII, resultou na criação de duas tradições: uma eclesiástica e outra ‘herética’ (errática). Vejamos alguns detalhes.
Em 1515, os bispos católicos, reunidos no Quinto Concílio de Latrão, alertam diante do perigo de uma leitura individual da bíblia. Nela pressentem uma ameaça ao seu controle sobre o dogma católico. Os sacerdotes só podem ler a Bíblia em latim, os fiéis têm de ouvir os sacerdotes. Esses mesmos bispos criam, em 1564, o Index romanus com o intuito de submeter a leitura da bíblia à sua aprovação. Sobretudo as bíblias em ‘língua vulgar’ permanecem suspeitas, não só no universo católico, mas também no protestante. Aí, a partir de 1520, um frenético processo de ‘confessionalização’ sacode o cristianismo europeu por mais de um século, até a relativa paz de 1648 (refiro-me aos Tratados de Westfália). Formam-se três blocos em estado de ‘guerra fria‘: o católico, o luterano e o calvinista. Cada bloco cria um exército de fanáticos prontos a entrar em campo a qualquer sinal de suspeita e a vigiar pelo alinhamento de todos os setores da sociedade à sua própria oficialidade religiosa. Nisso, a Bíblia vira, ao mesmo tempo, arma e vítima de uma violência religiosa generalizada. Bíblias são queimadas, rasgadas por ódio, jogadas no rio, como acontece na cidade francesa Angers em 1572, quando os católicos jogam a Bíblia dos huguenotes no rio. O mesmo deve ter acontecido com a Bíblia católica, em terras luteranas e calvinistas.
Com o passar do tempo, os antigos proprietários da Bíblia saem de cena, mas a abandonam em estado lamentável. Sob os golpes dessa história pesada, da pastoral do medo, da inquisição, da chantagem do inferno, de intimidações e culpabilizações, a Bíblia conserva até hoje muitos traumas. Intérpretes, comentaristas, inquisidores e defensores da fé acabaram transformando a Bíblia em texto mesquinho, enfadonho e arcaico, quando não francamente prejudicial ao desenvolvimento da inteligência humana. Um texto despreparado para suscitar um diálogo entre pessoas, pois a cada momento, maldições e ameaças, condenações e intimidações podem ser ressuscitadas e vociferadas. Será por isso que os ambientes acadêmicos leigos mostram-se alérgicos ao estudo bíblico e preferem deixá-lo a pessoas ligadas às igrejas? Efetivamente, o que se vê é que esses estudos são quase sempre exercidos por pessoas de uma ou outra forma ligadas a igrejas cristãs ou então a algum centro de estudos judaicos, como declara Hedwige Rouillard-Bonraisin, especialista francesa no assunto: Nunca encontrei (entre os que estudam esses temas) alguém que não tenha recebido educação religiosa (Les Collections de l’Histoire, 13, Paris, octobre 2001, p. 32).
Os papas tentaram colocar um dique contra a invasão do espírito científico em área que lhes parecia privativa. O embate fez vítimas, entre as quais se destaca o sacerdote francês Alfred Loisy (1857-1940) cujo livro O Evangelho e a Igreja, publicado em 1902, defende uma tese nada nova, pois já defendida por intelectuais dos tempos do Império Romano (Porfírio e Celso): ele declara simplesmente que os evangelhos não correspondem fielmente à história vivida por Jesus.
Uma conclusão se impõe: só se conseguirá avançar, em termos de leitura bíblica popular, na medida em que se supera o conflito latente entre dogma e ciência.
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José Maria Vigil.
É aqui que José Maria Vigil, que apresentei acima, entra de cheio. Ele se explicou, ao longo e ao comprido, juntamente com Ademar Kaefer, Luigi Schiavo, Sandro Gallazzi, Santiago Villamayor, José Lopes Silva, Juan Esteban Londoño, Antônio Carlos Frizzo e comigo, na Revista Alternativas de Manágua, Nicarágua, ano 22, n. 49, janeiro-junho de 2016, sob o título La Biblia tiene alma, aunque no tenga razón. Desafíos de la nueva arqueologia bíblica.
Vigil rompe categoricamente com a tradição eclesiástica dos últimos séculos no tocante à leitura bíblica, penetra em terreno novo e vislumbra um modo de se ler a Bíblia em conformidade com a ciência. Ele afirma: paradigmas não se criam, eles aparecem no decurso de pesquisas científicas. Dizer que a Bíblia ‘não tem razão’ (de um ponto de vista histórico) não é uma interpretação, uma ideologia, mas uma constatação.
Falar desse modo faz com que se trabalhe pela superação da separação entre duas tradições de leitura bíblica, existente desde o século XV. Uma separação sempre ocultada ou silenciada por quem se julgava numa posição hegemônica: a estrutura eclesiástica. Assim, por exemplo, o posicionamento de Spinoza, aqui sumariamente apresentado, nunca ganhou os relevos que merece, em terrenos eclesiásticos. Enquanto isso, o filósofo holandês-judeu foi ganhando adeptos sempre mais numerosos, no decorrer dos últimos três séculos e meio. Os exegetas passaram a estudar as línguas bíblicas (hebraico, o aramaico e o grego), ensaiaram uma leitura da Bíblia em consonância com os ditames da ciência moderna e enfrentaram corajosamente obstáculos eclesiásticos.
Graças à progressiva introdução da ideia de tolerância no decorrer do século XVIII, tanto na França como na Alemanha, ninguém mais foi queimado vivo por emitir opiniões contrárias às autoridades, como ainda aconteceu com Giordano Bruno em 1600. As ideias humanitárias triunfaram com a Revolução Francesa de 1789.
O processo continuou em ritmo mais acelerado no século XIX. Nasceram a egiptologia, a assiriologia, a epigrafia semita etc. Estudiosos alemães lançaram dúvidas sobre o valor historiográfico do Evangelho de João. Em torno de 1900 já é consenso que os evangelhos de Mateus e Lucas assimilam muita coisa do imaginário popular. Chama a atenção o fato que os Evangelhos Q (dos anos 50) e Tomé não divinizam Jesus (isso será reforçado pelas descobertas de Nag Hamadi, em 1945).
No século XX entram a filologia (a linguística) e a arqueologia bíblica, provocando sucessivos sustos nos que acreditam em ‘eternas verdades’ bíblicas. Ao mesmo tempo, avança-se no mapeamento de um universo religioso imaginário comum a todos os povos que mantiveram contato com o povo hebreu, não só na Mesopotâmia, mas também no Egito. Percebe-se sempre mais que as grandes imagens bíblicas são comuns ao imaginário religioso do Oriente médio: o céu (Deus Criador), a terra (paraíso terrestre), o ar (ascensão), o sopro animador (Espírito Santo). O inferno em baixo da terra, com seus demônios, monstros e outras ameaças. Acima de nós, entre a terra e o céu, atuam os anjos, protetores da vida. Estudiosos, como Sir James George Frazer (El Folklore en el Antiguo Testamento, Fondo de Cultura Economica, México, 1986), fazem estudos comparativos entre grande blocos culturais e descobrem, por exemplo, diversas narrativas de dilúvios na Babilônia, na Grécia, na Índia, na Austrália, em Nova Guiné e na Melanésia, na Polinésia e na Micronésia e até na América do Sul, na América central e no México, na América do Norte, na África, um pouco por todo o planeta, abrindo campo para um estudo dos mitos religiosos em escala planetária.
Na virada do século XXI entre a linguística (Ricoeur, Bakhtin, Wittgenstein, Frege, Habermas, Gadamer) faz sua entrada e demonstra a necessidade de se estudar a mediação literária para se chegar ao Jesus da história. Assim a perspectiva de Bultmann (1926) (que dizia que não se pode dizer praticamente nada sobre Jesus a partir dos evangelhos) é revertida e os especialistas estão de acordo que podemos conhecer Jesus, mas não da forma em que está sendo apresentado pela tradição das igrejas. O problema é Niceia, não são os evangelhos.
Hoje, a Bíblia está em fase acelerada de emancipação diante de instâncias cristãs e judaicas. Sempre mais é visto como um Patrimônio da Humanidade. Resgata-se o valor poético, onírico e imaginário da Bíblia, como se pode verificar em traduções como aquela – pioneira -publicada pela editora francesa Bayard no início dos anos 2000 (www.biblebayard.com). Aí, exegetas e literatos se juntaram e produziram textos numa linguagem bem mais próxima do leitor de hoje. Com isso, a Bíblia perde, aos poucos, aquele caráter hierático, solene e arcaico de edições ‘oficiais’, cujas expressões mostram claros sinais de desgaste. O desafio consiste em ressuscitar a empolgação que palavras como ‘cristo’ (ungido), ‘evangelho’ (notícia alegre), ‘espírito’ (sopro) suscitaram no início do movimento de Jesus. Mais difícil ainda traduzir o tradicional ‘bem-aventurados os pobres’ por ‘pobres, levantem-se’ (Mt 5, 3-16), com boa base na linguagem original de Jesus. Enfim, fica claro que precisa consertar, limpar e ‘escovar’ não poucas expressões bíblicas para que elas recuperem o brilho e o sentido originais.
Admiro o jesuíta francês Joseph Moingt que, em seu livro Croire quand même (‘Crer, apesar de tudo’; Temps Présent, Paris, 2011), escreve, com idade de mais de cem anos de vida: Obras recentes colocaram em questão o conjunto da historiografia bíblica e autores sérios falam abertamente da invenção da Bíblia, incluso do povo judeu. Num outro livro, intitulado: Faire bouger l’Église catholique (Fazer com que a Igreja católica se mexa; Desclée de Brouwer, Paris, 2012), o velho mestre se mostra aberto diante de uma leitura totalmente nova da Bíblia. Eis o que me parece ser um exemplo a seguir.
Do mesmo modo, José Maria Vigil é taxativo: ‘diante de evidências arqueológicas, estamos diante do desafio de se desconstruir a leitura tradicional da Bíblia e reconstruir algo diferente’. Ele insiste: não se trata de destruir, mas de desconstruir e, ao mesmo tempo, reconstruir algo novo. Vigil usa, aqui, a imagem de um edifício a ser demolido para que um novo possa ser erguido. E ele está bem acompanhado: Mariano Corbí na Espanha, José Armando Robles em Costa Rica, John Shelby Spong (+) nos Estados Unidos, Roger Lenaers (+) na Bélgica, John Hick na Inglaterra, Diarmuid O’Murchu na Irlanda, e, de novo nos Estados Unidos, Catherine Cornille e Roger Haight. Isso só para nomear alguns (se você quiser saber mais, veja: Nuevo tiempo axial em: [email protected] ou [email protected]). De minha parte, acho particularmente instigantes as palavras do bispo e escritor norte-americano John Shelby Spong (1931-2021), da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, que escreve: Eu vejo um cristianismo no futuro que é tão diferente do cristianismo em que fui criado que há quem pensa que os dois não estão conectados. Mas eu penso que estão conectados; Um modo de se viver o cristianismo está morrendo; Tudo que eu tenho a dizer se resume nisto: o mundo em que o cristianismo nasceu não é o mundo em que hoje vivemos; Se você identificar o cristianismo com o mundo em que nasceu, ele vai morrer, porque esse mundo está morrendo; Quanto mais envelheço, tanto mais profundamente creio e tanto menos cultivo crenças; Sempre lutei para que as instituições religiosas aceitem pessoas inaceitáveis; Tenho uma espécie de intuição mística de Deus. Quando me perguntam de definir Deus, eu fico sem palavras.
O cerne da questão está no espírito de liberdade. Spinoza, em seu Tratado teológico-político, de 1672, tem uma palavra contundente sobre esse tema: o mais grave erro da teologia consiste em ocultar a diferença entre conhecer e obedecer, fazendo-nos tomar o princípio da obediência como modelo de conhecimento.
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Três Tsunamis.
Uma palavra final. Entrei indiretamente no embate aqui descrito ao publicar, em meu blog www.eduardohoornaert.blogspot.com de 2 de março 2017 (dois meses antes do texto de Pablo aqui comentando), um breve texto, intitulado A Leitura bíblica na iminência de tsunamis. Usei, talvez exageradamente, a imagem de tsunamis a se formar no alto oceano das tendências históricas, capazes de sacudir fortemente as praias da leitura bíblica num futuro ainda não definido. Vislumbro três tsunamis: há o fundamentalismo tradicional, longamente praticado por igrejas históricas e hoje praticado em numerosas comunidades cristãs ao redor do mundo, que atualmente revela uma exacerbação inquietante e constitui um perigo crescente. Mas há igualmente os paradigmas arqueológicos e linguísticos, que – conforme se vê no texto acima – formam ondas crescentes, capazes, desde já, de atingir praias sossegadas de leitura bíblica e causar abalos inesperados. É verdade, a leitura científica (tanto arqueológica como linguística) da Bíblia é de difícil assimilação, pois ela dá a impressão de derrubar santuários onde nos sentíamos tão bem e de passar por cima de ideias que nos foram transmitidas com tanto carinho por nossos pais. Diante desse quadro delicado, quer me parecer que a questão de uma leitura bíblica em consonância com as citadas ciências há de figurar na agenda daquelas igrejas que se preocupam com o modo em que seus fiéis leem a Bíblia.
Afinal, faz bem recordar o seguinte: se a Bíblia atravessou mais de dois milênios e perdura até hoje, não é por causa de seu valor historiográfico, mas pelos valores éticos que prega: o amor ao próximo, o perdão, o acolhimento, a fraternidade, a misericórdia, a fé, a esperança, o universalismo, a libertação, a sensibilidade por marginalizados e doentes. Não se pode deixar de admirar a fé consistente, que perpassa a literatura bíblica, assim como a criatividade espiritual daqueles intelectuais hebreus que conseguiram expressar, por meio das mais variadas narrativas, questões e desafios que ainda nos atingem hoje, dando-lhes um cunho ético inconfundível, diferente da literatura dinástica, guerreira e violenta, endêmica em tantas culturas. Nenhuma literatura fala dos pobres como fala a Bíblia. Ora, nem a ‘revolução arqueológica’, nem a ‘reviravolta linguística’ atingem os valores éticos apregoados pela Bíblia. De modo que, desde já, somos convidados a entrar nas trilhas abertas, tanto por Pablo Richard quanto por José Maria Vigil, cada um a seu modo.
Termino com palavras de Dietrich Bonhoeffer: O dia virá em que a Palavra de Deus será falada de tal modo que as pessoas se sentirão interpeladas. Será uma nova linguagem, provavelmente não religiosa, mas libertadora, como a linguagem de Jesus. As pessoas ficarão admiradas e seduzidas pela força dessa linguagem. Então o mundo se renovará (Resistência e Submissão, Editora Sinodal, São Leopoldo, 2014).04.10.21
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.