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No mundo atual, a sociedade dominante perdeu a noção de que a relação social se baseia nos dons e direitos de cada pessoa e no bem comum. Hoje, esta dimensão de direitos vai além do humano e abrange os direitos dos animais, dos seres vivos, direitos da Terra, das águas e da natureza. A atual sociedade é especialmente incapaz de perceber direitos das pessoas que pertencem a minorias sociais e que vivem à margem do poder.

Nos Estados Unidos, desde o 25 de maio de 2020, quando George Floyd morreu asfixiado por um policial branco, houve mais de 8 mil manifestações contra o racismo. No entanto, o país continua tão racista quanto antes. Já em 2021, na mesma Carolina do Norte, no dia 21 de abril, o jovem negro Andrew Brown foi morto por um policial com um tiro na nuca. Alegando que foi em legítima defesa, o policial que o matou foi inocentado.

Lá e aqui, policiais continuam mais violentos se a vítima da repressão for negra. No Brasil, o massacre de Jacarezinho, defendido pelo vice-presidente da República, já se tornou notícia antiga. A polícia civil mantém o inquérito em segredo. Ao que parece, ninguém será condenado.

Por falar em crime, em países da Europa como Itália, França e Espanha, pessoas são condenadas à prisão e sofrem pesadas multas pelo “crime de solidariedade”. Incorre neste crime quem tenta salvar a vida de migrantes que se afogam no mar ou atravessam os Alpes sem abrigos adequados. É proibido acolher, alimentar e salvar suas vidas. Os tribunais condenam pessoas por terem facilitado a entrada ilegal de migrantes e clandestinos, mesmo se esse era o único modo de lhes salvar a vida.

Até hoje,  no norte da África, em pleno território de Marrocos, a Espanha mantém dois enclaves: Ceuta e Melila. Isso revela que o velho colonialismo europeu continua com a pretensão de dominar o mundo. É mais um acinte aos africanos. Os ricos não apenas defendem o seu direito de esnobar luxo e desperdício, enquanto milhões morrem de fome, mas querem viver isso diante dos pobres que não têm nada para comer.

O problema é que os africanos, asiáticos e latino-americanos têm o mal costume de não se resignarem à triste sorte que os impérios lhes impõem. Assim, entre a segunda-feira 17 e a terça, 18 de maio, de repente mais de oito mil pessoas tentaram atravessar o braço de mar que separa o Marrocos do território espanhol de Ceuta. Dessas pessoas que tentaram atravessar um braço de mar revolto, mais de mil pessoas eram de menor idade e havia crianças de sete e oito anos e desacompanhadas. Isso não teria ocorrido se as forças de segurança de Marrocos não tivessem facilitado e fingido que não viam.  Assim se vingavam da Espanha por esta ter abrigado Brahim Ghali, líder da Frente Polisario que, desde os anos 1970, luta contra a ocupação de Marrocos no Sahara Ocidental. Migrantes se transformaram em moeda de troca e peças de jogo entre as potências do mundo. Recentemente, o papa Francisco afirmou que hoje em dia os migrantes são “a carne de Cristo”, vendida e comprada no altar do lucro. De janeiro de 2021 até hoje, o número de migrantes afogados no Mediterrâneo é maior do que o dobro do número de mortes de anos anteriores. Sem falar nas pessoas que morrem nas câmaras de tortura da Líbia, nas florestas geladas da Bósnia e Croácia e nas travessias dos Alpes.

Luna Reyes é uma jovem espanhola de 20 anos, voluntária da Cruz Vermelha Internacional. Ela se deslocou a Ceuta para ajudar a acolher migrantes africanos que chegam à praia e são perseguidos pela polícia. Nestes dias, a internet mostrava um rapaz negro, vindo do Senegal. Ele chegou ao litoral de  Ceuta, depois de ter enfrentado o mar aberto e perigoso em um dos pontos mais violentos do Mediterrâneo. Saiu do mar chorando. Ao ver que seria recebido com armas pelos soldados e levado de volta à fome e à miséria. Luna correu e o abraçou como dizendo: Sou sua irmã… Por isso, ela está atacada e ameaçada por grupos racistas e extremistas da Espanha.

É preciso que a sociedade civil se mobilize em solidariedade aos grupos de migrantes que arriscam as suas vidas nas fronteiras da selvageria da Europa e da América do Norte. É urgente expor ao mundo que países que se dizem os mais civilizados do mundo mantêm verdadeiros campos de concentração. Cada vez mais, o mundo se transforma em câmara de tortura mantida pelos donos do capital que multiplicam suas riquezas.

O papa Francisco pede à humanidade e especialmente às pessoas de paz que pratiquem a espiritualidade ecumênica que nos chama a acolher, proteger, promover e integrar os/as migrantes. Quem é cristão escuta Jesus nos dizer: “Tornei-me migrante e você me acolheu” (Mt 25).

Obs: O autor é monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares.
É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 57 livros publicados no Brasil e em outros países. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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