A liberdade é condição primeira para sonhar e sorrir. Liberdade não combina com exclusão e eliminação. Não combina com cancelamento!
O advento da internet e das redes sociais mudou a forma e o jeito com que vivemos e elaboramos nossas relações interpessoais.
No anonimato, numa guerra por curtidas, likes e por aprovações sem fim e a qualquer custo, vivemos uma guerra temerária de egos, que não se importam em excluir, em difamar e em proclamar a negação da existência daqueles que julgamos “fora da nossa lei”.
É triste e desolador constatar que vivemos tempos loucos, onde somente a loucura dos mais fortes e “inteligentes” tende a se impor, a qualquer custo.
Como falar em reconhecimento social, num mundo que consagrou o primado do interesse individual nas relações sociais e econômicas? Por que temos tantas dificuldades em tolerar diferenças?
O prazer maior passou a ser mitificar ou demonizar os outros, ao invés de reconhecê-los por seus acertos ou méritos, erros ou deméritos. Sim, perdemos a noção de que críticas sempre são bem-vindas, desde que não ataquem as pessoas, e sim, suas posturas.
Somos seres sociais que precisam de reconhecimento, muito antes da efêmera fama.
“A fama é efêmera; quando alcançar um grande sucesso, troque a festa por um momento de silêncio e oração. (Lc 5,12-16) Assista aqui.
Até bem pouco tempo atrás, a maioria das pessoas buscava este reconhecimento através das habilidades e competências que eram geradas pela liderança, pelo trabalho ou pela atuação social. Para tanto, era necessário certo tempo e investimento pessoal nas relações com as outras pessoas. Não era nada instantâneo, como se pretende agora.
Somos, se temos palco ( Texto: Somos se temos palco, em busca de reconhecimento). Este palco agora também virtual (internet e redes sociais) tem peculiaridades que precisamos compreender e reconhecer.
Aprendemos, desde pequenos, a necessidade de socializar, de dividir, de crescer juntos, de compartilhar, de experimentar sentimentos alheios. Na escola, vamos aprendendo a importância da socialização e experimentando a riqueza das trocas, para a nossa humanização.
O conhecimento crítico-reflexivo e a socialização tem o poder de nos tornar pessoas melhores, mais humanizadas.
Confira o que pensamos sobre “Como nos tornamos humanos?”
Qualidade da vida social
A qualidade da vida social está intrinsecamente ligada à nossa capacidade de conviver, de associar-se, de mover-se, de construir acordos e consensos, de investir em projetos e ideias coletivas, de agregar-se aos outros para produzir vida de sentido.
Sozinhos, não somos ninguém, e nem haverá felicidade nas vivências solitárias, embora uma multidão gostaria que houvesse.
Os aprendizados são pessoais, mas os processos envolvem diferentes sujeitos que marcam a vida de cada um de nós.
Cada um acumula, constrói e vive determinados papéis sociais, que se traduzem pelas formas de ser, pensar e agir. Estes papéis (ideias que os outros passam a ter da gente) passam pelo crivo permanente da coerência. A coerência é essencial; difícil de ser mantida, mas o grande pêndulo pelo qual somos permanentemente avaliados pelos outros. Os papéis sociais permitem-nos compreender a situação social, pois são referências para a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são referências para o nosso próprio comportamento (Aprofunde mais).
Está em curso, entre nós, uma cultura do rótulo, uma cultura de rápida identificação do outro como alguém que posso seguir, posso negar ou posso odiar, instantaneamente. Martha Medeiros, em seu livro Non-stop (crônicas do cotidiano). Porto Alegre: L&PM, 2007 (Confira aqui) , já descreveu:
“Simplificações são tentadoras neste mundo onde tudo é bem mais complexo do que parece. É quase um insulto quando encontramos uma morena burra, um português inteligente, um poeta rico, uma celebridade deprimida, um político honesto, um adolescente bem resolvido. Preferimos conviver com estereótipos porque eles facilitam a vida da gente: generaliza-se e fim. Menos uma coisa pra pensar”. (p. 62-3)
Era de cancelamento na internet
A condenação sumária em massa, com apoio da galera, passa a ser a novidade do que descrevemos acima. Ela se traduz no que foi denominado cancelamento.
A internet virou o palco das nossas disputas onde formamos bolhas, onde não interessam mais as contradições e a diversidade dos nossos pensamentos e pontos de vista, sobretudo quando falamos de raça, gênero, discurso político ou aspirações profissionais.
As bolhas nos dão a errada sensação de que, ao pensarmos como todo mundo, viveremos mais confortáveis. Será?
Em entrevista recente (assista a entrevista) , a psicanalista Anna Carolina Lementy, ao falar deste tema, faz importantes afirmações sobre as duras consequências de quem é “cancelado” pelos outros. Veja o que pensa Lementy:
“A gente precisa fazer parte, ter aprovação, isso não é um problema, é inerente à maneira como estamos colocados no mundo hoje. O problema é lidar com essa desaprovação – porque ela virá em algum momento e de alguma forma – e precisamos ter recursos para lidar com isso. Se sentir excluído é problemático e pode causar diversas questões em relação aos vínculos. A pessoa pode acabar, sim, ficando extremamente deprimida se ela faz parte de um grupo e ele a bane. Ela pode questionar a si mesma até que ponto vale como pessoa, principalmente se não tiver recursos para lidar com o que aconteceu”.
Anna Carolina segue:
“Pra mim ainda é um enigma a crueldade das pessoas que promovem esse tipo de ação em relação ao outro. De verdade. É muito difícil uma pessoa não entender a dimensão daquilo que faz. Só que, por incrível que pareça, as pessoas estão cada vez mais desapropriadas do poder da própria palavra, porque é tudo muito rápido, instantâneo, ao alcance do dedo. Se você quiser compartilhar uma fake news hoje em dia, isso se faz com a maior facilidade. E esse tipo de facilidade foi deixando as pessoas alienadas do poder que cada uma delas têm”.
Perguntada sobre se existe algo de bom a partir do cancelamento na internet, a psicanalista e jornalista Anna Carolina Lementy é enfática:
“Eu acho que não. Qualquer ação que não permita o diferente, a discordância, pode ser danosa para a gente em termos de sociedade. É isso que produz discursos violentos. Não creio que qualquer pessoa possa também se colocar no papel de “reprimido”, porque também isso é problemático. Reprimir uma ideia torna ela muito mais potente, já vimos isso acontecer. O debate, o questionamento, é o que nos faz evoluir como sociedade e pensar em caminhos. Silenciar equivale a fermentar uma espécie de ódio que pode ir para caminhos que não conseguimos prever ou controlar. Se a gente para pra pensar o que foi o nazismo chegamos um pouco a esse raciocínio. Então, é preciso poder falar e ouvir o outro – e isso só se dá se todo mundo tiver voz. Não vejo o cancelamento ser benéfico olhando por esse sentido”.
Nem sempre quem grita tem razão
O professor de filosofia Filipe Campello, uma das referências nacionais voltadas à compreensão do fenômeno, explica os mecanismos que movem o linchamento virtual, em matéria publicada na Revista Veja é enfático sobre as características que se assenta a cultura do cancelamento:
“No lugar de uma crítica social, passa a predominar uma lógica de cancelamento dirigida aos próprios indivíduos, em vez do reconhecimento de direitos, o punitivismo baseado numa lógica moralista; e ao contrário da possibilidade de aprendizado e mudança, a pressuposição de uma espécie de essencialismo atemporal”. Em outra passagem, Campello afirma: “Alias, esse é o paradoxo da pós-verdade: não é que haja várias verdades continuamente disputadas, mas a pretensão de uma única verdade que se impõe. E ela pode não passar de um boato (Leia mais).
O cancelamento torna-se perigoso, porque não permite aos outros o contraditório; não permite a quem toma determinadas atitudes defender-se e resolver situações pelo diálogo e/ou recuo de uma das partes envolvidas. Em 2021, no BBB 21, brigas entre dois participantes foram a prova de cancelamento real e virtual (Acesse).
Babu Santana, ex-BBB também se manifesta: “Não devemos cancelar as pessoas, devemos educar” (Para saber mais).
Lucas Penteado, participante do BBB21, deixa a casa de maneira triste, sem direito de se expressar como deveria e tendo de ouvir muitas barbaridades. Esta edição do BBB21 é marcada pelo cancelamento e levanta questões sobre a ética das relações interpessoais, bem como a perversidade do bulliyng e da discriminação, amplamente praticados no cotidiano dos lares, escolas e ruas de nossas cidades brasileiras. Lucas não teve uma crise nervosa à toa. Seus gritos no confessionário, vazados pelo pay-per-view, dão uma boa mostra do tamanho do estrago emocional que o bullying pesado e a falta de respeito lhe provocaram. As marcas desta experiência trágica doerão mais do que qualquer paredão e vão durar por muito tempo. Que vergonha de quem assistiu calado a tudo isso…. (Veja mais).
O reconhecimento social
Todos precisamos de reconhecimento social. Reconhecimento social é uma lacuna que precisamos preencher; faz parte das grandes necessidades humanas, sobretudo da necessidades de sermos cuidados, vistos e reverenciados. Reverência é atenção, consideração, respeito.
Cada fase de nossa vida, exige que sejamos cuidados. Exige que saibamos cuidar, de si mesmos e dos outros. E, somente juntos, promovemos relações que nos integram à sociedade, pois temos, todos e todas, a necessidade de nela sermos aceitos, queridos e promovidos. Como já escrevemos em outra reflexão, “a necessidade do cuidado e as carências afetivas, próprias do ser humano, não significam atestado de fraqueza humana. O que nos torna fortes, capazes de superar as nossas maiores contradições, é a nossa capacidade de encarar nossos limites e carências, pois estas nos despertam para o crescimento e discernimento pessoal, afetivo e social”.
A escola, lugar de significativas e distintas aprendizagens, é também um grande laboratório de aprendizagens colaborativas. Cotidianamente, através das relações interpessoais, a escola administra as suas tensões internas, favorecendo o diálogo, o respeito às diferenças, o reconhecimento das alteridades. As escolas deveriam ser espaços de humanização. Humanizar-se é tornar-se melhor ser humano, a partir do conhecimento.
As escolas deveriam cuidar, substancialmente, de duas dimensões inerentes ao ser humano e à própria escola: a integração e socialização das pessoas e a construção de conhecimentos. Se estas dimensões não estiverem bem organizadas nas escolas, elas esvaziam seu sentido e perdem sua importância (Leia mais).
A escola cumpre um papel importante na sociedade na promoção do reconhecimento social. Mas diferentes grupos sociais como família, amigos, colegas de escola, grupos de jovens, clubes, dentre outros, devem também promover o reconhecimento social de cada indivíduo e de todos os indivíduos. Este reconhecimento começa com o respeito às diferentes individualidades e, consequentemente, o reconhecimento das diferentes potencialidades e habilidades que são próprias ou desenvolvidas por treino ou aperfeiçoamento por cada um e por todos.
Cada um tem, na sua individualidade, algo de bom que merece ser visto, conhecido e reconhecido.
Eis um dos desafios maiores dos nossos tempos: promover o reconhecimento social num mundo que cultua o individualismo, promove a intolerância e pratica a exclusão sumária daqueles que, por ventura, não se consideram mais dignos de serem seguidos ou considerados.
Vivemos num tempo em que qualquer “pisada na bola” é motivo de exclusão; não oportunidade de repensar conceitos, atitudes ou valores.
O reconhecimento social é o atestado de consideração e reverência que a sociedade, ou o grupo da nossa maior convivência social, confere a cada indivíduo e a todos os indivíduos. Cada um de nós precisa ser reconhecido em virtudes, habilidades ou conhecimentos.
Cada um precisa ter condições de buscar seu lugar ao Sol e neste grande Universo o Sol brilha para todos. A liberdade é condição primeira para sonhar e sorrir. Liberdade não combina com exclusão e eliminação. Não combina com cancelamento!
Proposta de atividade pedagógica
Esta atividade pode ser aplicada a estudantes do Nono Ano do Ensino Fundamental ou em turmas do Ensino Médio. No Nono Ano, Unidade temática: Ética. Objeto de Conhecimento: Refletindo sobre temas morais e éticos/Liberdade Habilidades: EF08FL03PF01 Examinar temas e problemas que envolvem a vida cotidiana do adolescente, reconhecendo possibilidade de fazer escolhas e justificá-las.
No Ensino Médio, na àrea de Ciências Humanas, pode ser trabalhado também em aulas de filosofia, sociologia e ensino religioso.
Questões para pensar, refletir e desenvolver:
- Caro estudante! Já discutiu uma centena de vezes a cultura do cancelamento no Twiter mas não saberia como abordá-la em uma redação? Esse texto é para você! Em meados de 2017, o termo “cancelamento” surgiu para nomear uma prática virtual que já vinha acontecendo: o boicote a personalidades (famosas ou não) que cometeram alguma violência dentro e … (Aqui é o início do texto que os estudantes devem dar seguimento?) (Leia mais).
- Investigue, na internet, um caso ou dois de pessoas que foram canceladas. Descreva a situação e a sua opinião sobre este cancelamento concreto que você conheceu.
- A partir da leitura do texto acima e depois de assistir ou acessar textos complementares, responda: Cancelar significa infligir um direito natural, o de existir? O que significa ser humano e livre diante dessa “cultura do cancelamento”? A liberdade exige, requer a negação da alteridade/ do outro?
- Em grupos, separados por turma, discutir a situação vivida por Lucas Penteado, na edição do BBB21. Problematizar, levantar hipóteses e saídas que poderiam ter evitado o constrangimento e a humilhação do participante. Depois, grupos podem dividir com restante da turma.
- Depois dos estudos e leituras, organizar debate em sala de aula sobre o tema, escutando todas as posições e opiniões sobre o tema cancelamento com a ideia de aprofundarmos o assunt0.
Obs: O autor é professor, escritor e ativista em direitos humanos, desde Passo Fundo, RS