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Meu projeto era escrever uma série de artigos sobre a educação dos sentidos: a visão, a audição, o olfato, a degustação, o toque —e um misterioso sexto sentido. Era e ainda é. Mas, às vezes, justifica-se interromper provisoriamente o planejado por algo de extraordinário, inesperado, que acontece. Aconteceu comigo. Os meus pensamentos bem arranjados, já em marcha, levaram uma rasteira cheia de risos. Explico.
Faz uns tempos, escrevi para o Sinapse um artigo com o título “Aprendo porque amo”. Nesse artigo eu sugeri que a pedagogia que se sabe antes de estudar pedagogia (há uma pedagogia que nasce com a gente, sem estudos —Daniel Pennac, no seu livro “Como um Romance”, escreveu esta frase deliciosa: “Que espantosos pedagogos nós éramos quando não nos preocupávamos com a pedagogia!”) se vale de artifícios nada científicos —amorosos, poéticos e mágicos— para realizar os seus intentos.
O assunto era como as relações de aprendizagem e ensino se dão através das pontes poéticas que o amor constrói. Uma dessas pontes tem o nome de metáfora, que faz ligações entre coisas parecidas. No filme “O Carteiro e o Poeta”, o carteiro diz que se sente como um “barco batido pelas ondas”. Essa metáfora liga a sua alma a um barco. Quem vê um barco batido pelas ondas vê a alma do carteiro.
Metonímia é quando uma imagem nos conduz a outra por relações de proximidade. Tenho um peso de papel sem valor que o meu pai me deu. É claro que ele não se parece com o meu pai. Não é metáfora. Mas foi objeto do meu pai. Ficava na sua mesa de trabalho. Por isso, porque o peso de papel e o meu pai estiveram juntos, o peso de papel me lembra o meu pai.
No artigo, eu me referia ao poder pedagógico das metonímias e relatei uma experiência infantil, quando estava no primeiro ano do Grupo Escolar Brasil, na cidade de Varginha. Era o ano de 1942. Minha professora era a dona Clotilde. Como é possível que muitos não tenham lido o artigo a que me referi, vou transcrever o trecho relevante: “Ela fazia o seguinte: sentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar onde todos a viam —acho que fazia de propósito, por maldade— , desabotoava a blusa até o estômago, enfiava a mão dentro dela e puxava para fora um seio lindo, liso, branco, aquele mamilo atrevido… E nós, meninos, de boca aberta… Mas isso durava não mais que cinco segundos, porque ela logo pegava o nenezinho e o punha para mamar. E lá ficávamos nós, sentindo coisas estranhas que não entendíamos. (…) Terminada a aula, os meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para carregar sua pasta. Quem recebia a pasta era um felizardo, invejado. Como diz o ditado, ‘quem não tem seio carrega pasta'”. Traduzida para a pedagogia, essa metonímia significa que, com freqüência, os alunos são capazes aprender coisas difíceis (carregar a pasta) em virtude da admiração que sentem pelo professor.
A rasteira de risos que me desviou dos meus propósitos aconteceu na cidade de Cambuquira, em Minas, bem pequena, cheia de matas, lugar de tucanos, de águas minerais, de hotéis luxuosos abandonados, fósseis de um tempo de riqueza, onde o tempo escorre preguiçoso. Tinha ido lá para fazer uma fala. Contei o caso da dona Clotilde. Todo mundo riu. Todo mundo aprendeu. O riso faz bem à inteligência.
Aí aconteceu a surpresa alegre: contaram-me que a dona Clotilde está viva, aos 92 anos. Estar vivo aos 92 anos é espanto, coisa rara. Mas pasmem! Ela, aos 90 anos, defendeu tese de mestrado! E sua cabeça está mais lúcida do que nunca, cheia de indagações metafísicas… Que alegria!
Há muitos anos, escrevi sobre um japonês que fez vestibular para medicina aos 70 anos. Explicando a razão por que fazia o vestibular aos 70 anos (parece inútil, coisa de velho que perdeu o senso da realidade…), ele disse: “Desde menino eu quis estudar medicina. Quando era moço, não me foi possível porque eu tinha de cuidar dos meus pais. Quando me tornei adulto, não me foi possível porque tinha de cuidar dos meus filhos. Agora, velho, meus pais mortos, meus filhos criados, posso finalmente realizar o meu sonho de menino”. Os seres humanos são assombrosos! Mas o japonês, comparado à dona Clotilde, não passa de um menino!
Os jornais dedicam espaço a jogadores de futebol, a aficionados de rinhas de galos, a políticos corruptos e a personalidades da “society”. Pois eu acho que a dona Clotilde merece muito mais ser notícia. A dona Clotilde, mãe comum, modesta professora do interior, produz assombro, sorrisos e esperança.
Publicado na Folha de S.Paulo
Obs: Ver AUTORIZAÇÃO do Instituto Rubem Alves no item OBRAS LITERÁRIAS.