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Assim como termômetro denuncia a febre, se houvesse um instrumento que mostrasse o grau de intolerância e violência presente na sociedade, talvez tivéssemos inventar números acima de cem. Parece que, a cada dia, as pessoas se tornam mais incapazes de lidar com diferenças políticas, culturais e religiosas. Há quem se pergunte porque e como chegamos a esse ponto. No Brasil, nenhuma rede de televisão ou órgão de comunicação vai publicar tudo o que tem feito para semear, ódio, racismo e para sustentar no poder não apenas um Bozo qualquer, mas os/as representante daquilo que, com razão, Jessé de Souza chama de “elite do atraso”. Por isso, é urgente buscar algum antídoto para a epidemia da raiva e reencontrar motivos para teimar em termos fé na humanidade. Assim sendo, nunca foi tão necessário e oportuno, nestes últimos dias de janeiro, nos unir aos irmãos e irmãs da Índia, no aniversário do martírio do Mahatma Gandhi. Que a memória da sua vida e da sua mensagem de paz e não violência possam nos ajudar.
Em Dehli, no dia 30 de janeiro de 1948, um hindu fanático assassinou Gandhi pelo fato de que o mestre, sendo hinduísta, decidiu morar em um bairro de muçulmanos para vivenciar o diálogo entre as religiões. Até hoje, na Índia, um partido político prega que ser hindu de nacionalidade significa pertencer à religião hinduísta. E assim todos os hindus que são muçulmanos, judeus ou cristãos são considerados traidores.
Infelizmente, mais de 70 anos depois, o mundo de hoje ainda está menos tolerante e menos capaz de convivência nas diferenças. Por isso, é urgente recordar a herança do Mahatma Gandhi e atualizá-la para nós e para toda a humanidade. Alguns de seus pensamentos percorrem o mundo inteiro e propõem um novo modo de agir: “Comece por você mesmo a mudança que propõe ao mundo”. “Você pode se considerar feliz somente quando o que pensa, diz e o modo como age estiverem em completa harmonia”. Aí está uma profunda indicação de caminho.
A realidade do mundo atual é muito diversa da época de Gandhi na qual a Índia era dominada colonialmente pela Inglaterra. No entanto, apesar disso, as principais intuições de Gandhi se mantêm necessárias. Sua luta pacífica, através da Satyagraha, o caminho da verdade e da Ahimsa, a não violência podem ser para nós instrumentos de nossa ação social e política para transformar o mundo.
No século XX, a ação de Gandhi conduziu a Índia à sua independência política. Na África do Sul, inspirou líderes como o bispo Desmond Tutu e Nelson Mandela. Nos Estados Unidos, norteou o pastor Martin-Luther King em sua luta contra a discriminação racial. No Brasil, foi a inspiração para o trabalho de Dom Hélder Câmara contra a ditadura militar e por uma insurreição evangélica, a partir da justiça e da paz.
Na América Latina, muitos movimentos sociais têm se firmado no caminho da não violência ativa como instrumento de luta pacífica pela justiça e pela libertação dos povos. Na Argentina, Adolfo Perez Esquivel, escultor e ativista cristão pelos Direitos Humanos, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Também, em 1992, Rigoberta Menchu, índia Maya da Guatemala foi agraciada com o mesmo prêmio por sua luta pacífica pela libertação do seu povo e sua mensagem de esperança para todo o continente.
Nas novas Constituições nacionais, aprovadas no Equador e na Bolívia, um dos princípios fundamentais colocados como meta do Estado é garantir o “bom viver” que cada povo indígena chama de uma forma diferente (suma kawsay ou suma kamana ou ainda com outros nomes), mas significa a opção por uma vida plenamente sadia, baseada no princípio da sustentabilidade ecológica e social e na dignidade de todas as pessoas. O “bom viver” privilegia o coletivo e não o individual e busca uma cultura da sobriedade e da partilha solidária na relação com a Terra e na forma de desenvolver a educação e a saúde. Quem é cristão, logo se recorda de que esta busca de uma vida que seja verdadeira e plenamente vivida é o objetivo pelo qual Jesus de Nazaré define a sua missão: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10).
Apesar de que estes caminhos políticos são intuições latino-americanas e a partir das necessidades do mundo deste século XXI, sem dúvida, podem se considerar uma digna e bela realização da herança do Mahatma Gandhi na vida de nossos povos.
Obs: O autor é monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares.
É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 57 livros publicados no Brasil e em outros países. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes).