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No Evangelho segundo São João, Jesus, em tensa discussão com os entendidos nas Escrituras, se refere a Moisés como alguém que já O conhecia e por isso chegara a escrever sobre Ele (cf. Jo 5, 45-47). Algo semelhante diz o evangelista a respeito do profeta Isaías, após aludir ao texto do Profeta (Is 6, 9-10), acrescenta: “Isaías disse essas palavras porque contemplou a Sua glória e falou a respeito d’Ele” (Jo 12, 41). Segundo João, Isaías contemplara a glória de Jesus e por isso pôde escrever sobre Ele. Finalmente, o mais espantoso, Jesus diz a Seus adversários para escândalo deles: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, ele o viu e encheu-se de alegria”(Jo 8, 56). E, repreendido, declara de maneira ainda mais chocante: “Em verdade, em verdade, vos digo: Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8, 58). Em outras palavras, personagens do chamado Antigo Testamento são apresentadas como contemporâneas de Jesus. É por isso que Santo Agostinho depois veio a sintetizar: “Novum in Vetere latet; Vetus in Novo patet” (“No Velho já está latente o Novo; no Novo está patente o Velho”). Ambas as dimensões da Aliança são simultâneas, contemporâneas uma da outra. O mesmo mistério, o mistério de Cristo e da salvação, está presente em ambas as etapas da história da salvação. Poderíamos falar disso como o “esquema de contemporaneidade dialética”, pois as Escrituras apresentam também outro esquema, o de duas “etapas históricas sucessivas”.
O Primeiro Testamento, além de ser etapa histórica anterior à do Novo, é bem mais. É revelação na história de uma dimensão antropológica permanente que reside em cada ser humano. Quando dizemos que, a partir de Jesus, vivemos na etapa histórica do Novo Testamento, não podemos esquecer que ainda estamos num mundo sem Cristo e sendo chamado a dirigir-se em Sua direção. Dentro de nós, na verdade, ainda persistimos a ser gente de “antigo testamento”. Baste ver a situação do mundo, este mar de opressão e de dor, de dominação e maldade, de marginalização e exclusão. E nem falemos da insanidade e da crueldade das guerras. Quem poderia negar que ainda somos gente da antiga Lei? Tão distantes do que se propõe no Sermão do Monte (cf. Mt 5-7)? De fato, ainda não somos verdadeiros(as) parceiros(as) de Deus na nova etapa do Pacto, ainda almejamos por assumir o Pacto definitivo. Continuamos a necessitar da Lei, como nos diz dramaticamente o Apóstolo São Paulo, no capítulo 7ª da Carta aos Romanos.
A superação da dimensão de Antigo Testamento em nós e a passagem para o Novo depende de conversão radical. A única possibilidade de superar a condição antiga em nós é romper com a autossuficiência, a tentação de sentir-se superior aos demais seres humanos, cedendo ao desejo de poder e de riqueza. A passagem se dá quando nos pomos a contemplar a cruz de Jesus e no abismo de escuridão de uma atitude de fé profunda, balbuciamos as palavras humildes e implorantes do ladrão no Calvário: “Senhor, lembra-Te de mim quando houveres passado ao Teu Reino” (Lc 23, 42). Aí começa em nós o Novo Testamento, quando nos prostramos e reconhecemos nossa condição de seres de pecado. A história humana depende desse momento e da certeza de que ele é possível. A cruz de Cristo é o marco de passagem. O Novo Testamento, enquanto etapa histórica, é revelação dessa nova dimensão da realidade humana que brota do profundo de nosso interior e tem o poder de moldar nosso ser por novos e inéditos valores de vida humana. É a via da “divinização”, como diziam os antigos Pais da Igreja, que nos humaniza e revela o mundo por vir (cf. 1Cor 1-3).
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política