Nos dias atuais, especialmente durante o isolamento social, devido a presença perigosa do coronavírus, a humanidade despertou de seu sono profundo: começou  ouvir os gritos da Terra e os gritos dos pobres e a necessidade do cuidado de uns para com os outros  e também da natureza e da Mãe Terra. De repente, demo-nos conta  de que o vírus não veio do ar. Não pode ser pensado isoladamente, mas dentro de seu contexto; veio da natureza. Ele é uma resposta da Mãe Terra contra o antropoceno e o necroceno, vale dizer, contra a sistemática dizimação de vidas, devida à agressão do processo industrialista, numa palavra, do capitalismo mundialmente globalizado. Ele avançou sobre a natureza, desflorestando milhares de hectares, na Amazônia, no Congo e em outros lugares onde se encontram as florestas úmidas. Com isso destruiu o habitat dos centenas e centenas de vírus que se encontram nos animais e até nas árvores. Saltaram em outros animais e destes a nós.

Em consequência de nossa voracidade incontrolada, cada ano desaparecem cerca de cem mil espécies de seres vivos, depois de milhões de anos de vida sobre a Terra e ainda, segundo dados recentes, há um milhão de espécies vivas sob risco de desaparecimento.

A ideia-força da cultura moderna era e continua sendo o poder como dominação da natureza, dos outros povos, de todas as riquezas naturais, da vida e até dos confins da matéria; esta dominação ocasionou atualmente as ameaças que pesam sobre o nosso destino.  Essa ideia-força tem que ser superada. Bem dizia Albert Einstein: “a idéia que criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise; temos que mudar”.

A alternativa será esta: ao invés do poder-dominação deve-se colocar a fraternidade e o cuidado necessário. Estas são as nova ideia-força. Como irmãos e  irmãs, somos todos interdependentes e devemos nos amar e cuidar. O cuidado implica numa relação afetuosa para com as pessoas e para com a natureza; é amigo da vida, protege e confere paz a todos que estão à sua volta.

Se o poder-dominação significava o punho cerrado para submeter, agora oferecemos a mão estendida para se entrelaçar com outras mãos, para cuidar e para afetuosamente abraçar. Essa mão cuidadosa traduz um gesto não agressivo para com tudo o que existe e vive.

Portanto, é urgente criar a cultura da fraternidade sem fronteiras e do cuidado necessário que a tudo enlaça. Cuidar de todas as coisas, desde o nosso corpo, da nossa psiqué, do nosso espírito, dos outros e mais comezinhamente do lixo de nossas casas, das águas, das floresta, dos solos, dos animais, de uns e de outros, começando pelos mais vulneráveis.

Sabemos que tudo o que amamos, cuidamos, e tudo o que cuidamos também amamos. O cuidado sana as feridas passadas e impede as futuras.

É neste contexto urgente que ganha sentido um dos mais belos mitos da cultura latina, o mito do cuidado.

“Certo dia, ao caminhar na margem de  um rio,  Cuidado viu um pedaço de barro . Foi o primeiro a ter a ideia de tomar  um pouco dele  e moldá-lo  na forma de um ser humano. Enquanto contemplava, contente consigo mesmo, com  o que havia feito, apareceu Júpiter, o deus supremo dos gregos e dos romanos.

Cuidado pediu-lhe que soprasse  espírito na figura que acabara de moldar. O que Júpiter  acedeu  de bom grado.

Quando, porém, Cuidado quis dar um nome  à criatura que havia projetado, Júpiter o proibiu. Disse que essa prerrogativa de impor um nome era missão dele. Mas cuidado insistia que ele tinha esse direito por ter, por primeiro pensado e moldado a criatura em forma de um ser humano.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam acaloradamente, de súbito, irrompeu a deusa  Terra. Quis também ela conferir um nome à criatura, pois, argumentava, que ela  fora feita de barro, material do  corpo, da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada sem qualquer consenso.

De comum acordo, pediram, ao antigo Saturno, também chamado de Cronos, fundador da idade de ouro e da agricultura, que funcionasse como árbitro. Ele apareceu na cena. Tomou a seguinte decisão que pareceu a todos   justa:      

“Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito quando essa  criatura morrer”.

“Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer”.

Mas como, você, Cuidado foi quem, por primeiro, moldou essa criatura, ela ficará  sob o seu cuidado enquanto  ela viver”.

“E uma vez que entre vocês há consenso  acerca do nome, decido eu:  esta criatura será chamada Homem (ser humano), isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

Vejamos a singularidade deste mito. O cuidado é anterior a qualquer outra coisa. É anterior ao espírito e anterior à Terra. Em outras palavras, a concepção do ser humano como composto de espírito e corpo não é originária. O mito é claro ao afirmar que “foi o cuidado o primeiro a moldar o barro na forma de um ser humano”.

O cuidado comparece como o conjunto de fatores sem os quais não existiria o ser humano. O cuidado constitui aquela força originante da qual jorra e se alimenta o ser humano. Sem o cuidado, o ser humano continuaria a ser apenas um boneco de barro ou um espírito desencarnado e sem  raiz em nossa realidade terrestre.

O Cuidado, ao moldar o ser humano, empenhou amor, dedicação, devoção, sentimento e coração. Tais qualidades passaram à figura que ele projetou, isto é, a nós, seres humanos. Estas dimensões entraram em nossa constituição, como um ser amoroso, sensível, afetuoso, dedicado, cordial, fraternal e carregado de sentimento. Isso faz o ser humano emergir verdadeiramente  como humano.

Cuidado recebeu de Saturno a missão de cuidar do ser humano  ao longo de toda a sua vida. Caso contrario, sem o cuidado, não subsistiria  nem viveria.

Efetivamente, todos nós somos filhos e filhas do infinito cuidado de nossas mães. Se elas não nos tivessem acolhido com carinho e cuidado, não saberíamos como deixar o berço e buscar nosso alimento. Em pouco tempo teríamos morrido, pois não contamos com nenhum órgão especializado que garanta nossa sobrevivência.

O cuidado, portanto, pertence à essência do ser humano. Mas não só. Ele é a essência de todos os seres, especialmente dos seres vivos. Se não os cuidarmos, eles definham e lentamente adoecem e por fim morrem.

O mesmo vale para a Mãe Terra e para tudo o que nela existe. Como disse bem o Papa Francisco em sua encíclica que leva como sub-título ”Cuidando da Casa Comum”: “devemos alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo”.

O cuidado é também uma constante cosmológica. Bem dizem os cosmólogos e astrofísicos: se as quatro forças que tudo sustentam (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a forte) não se tivessem articulado com extremo cuidado, a expansão ficaria demasiadamente rarefeita e não haveria densidade para originar o universo, a nossa Terra e a nós mesmos. Ou então seria demasiada densa e tudo explodiria em cadeia e nada existiria do que existe. E esse cuidado preside o curso das galáxias, das estrelas e de todos os corpos celestes, a Lua, a Terra e nós mesmos.

Se vivermos a cultura e a ética do cuidado, associado ao espírito de irmandade entre todos, também com os seres da natureza, teremos colocado os fundamentos sobre os quais se construirá um novo modo de nos relacionar  e de viver na Casa Comum, a Terra. O cuidado é a grande medicina que nos pode salvar e a irmandade geral nos permitirá a sempre desejada comensalidade e o amor e a feto entre todos.

Então continuaremos a brilhar e a nos desenvolver sobre esse pequeno e belo planeta.

Esta consideração sobre o cuidado concerne a todos os que cuidam da vida em sua diversidade e do planeta, especialmente agora, sob  pandemia do Covid-19, o corpo médico, os enfermeiros e enfermeiras e outros que trabalham nos hospitais, pois, o cuidado essencial cura as feridas passadas, impede as futuras e garante o nosso futuro de nossa civilização de irmãos e de irmãs, juntos na mesma Casa Comum.

Obs: Leonardo Boff escreveu O cuidado necessário  e Saber cuidar, ambos pela Editora Vozes de Petrópolis.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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