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Desde o começo deste mês de novembro, ocorrem manifestações e iniciativas do mês da união e consciência negra. Neste ano, por causa da pandemia, temos de nos contentar com videoconferências e eventos virtuais. Mesmo se não podemos fazer encontros presenciais, a causa do povo negro parece mais urgente do que nunca neste momento no qual o Brasil já conta com mais de 160 mil vítimas do vírus e do descuido total com o qual o governo federal trata o povo, principalmente as camadas mais pobres e vulneráveis da população.
Essa realidade de profunda desigualdade e injustiça social se expressa também na questão racial. No Brasil, as violências sociais atingem muito mais as pessoas negras do que as de outra raça. Conforme o Atlas da Violência de 2019, os negros representam 75% das vítimas de homicídio. Entre as mulheres, vítimas de feminicídio, 61% são de jovens negras. Não é por acaso que, segundo o IBGE, dos 10% de brasileiros mais pobres, 75% são negros. Trata-se de um racismo, profundamente interiorizado no modo de pensar e de ser da maioria da sociedade. É decorrência da história de quatro séculos de escravidão institucionalizada. A quem não compreendia porque tinha de ser assim, a resposta de muita gente era: Sem escravos, o Brasil não funciona. Dentre os países da América, o nosso país foi o último a abolir a escravidão. Mesmo quando isso aconteceu formalmente, em 1888, a sociedade tratou de legitimar novas formas de servidão não reconhecidas pela lei como escravidão. Até hoje, continua enraizado no inconsciente coletivo da sociedade brasileira um pensamento que discrimina as pessoas negras. Elas são vistas como inferiores e são impedidas de viverem como cidadãs de pleno direito no país e na vida civil.
Isso se chama “racismo estrutural”. É a naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro. Assim, se legitimam e promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. No Brasil, isso atinge mais especificamente os povos indígenas e a população negra.
Este racismo toma a cara de racismo ambiental quando “naturalmente” são as pessoas negras que têm de conviver com as áreas de natureza degrada e com as consequências mais violentas da destruição ecológica. Se a proximidade de uma usina nuclear se tornar área de risco serão comunidades negras que poderão habitar ali. Se no campo uma empresa usa agrotóxicos que atingem a saúde humana, como que “por acaso”, os mais atingidos serão índios e negros.
E como não podia deixar de ser o racismo tem também uma cara religiosa. O racismo religioso está por trás do preconceito muito espalhado em grupos cristãos fundamentalistas de que as religiões negras são idolátricas e até demoníacas. A cada dia, no Brasil, um centro de Umbanda ou templo de Candomblé é atacado, invadido e às vezes até depredado. E essa perseguição é perpetrada por grupos que se dizem cristãos e afirmam agirem em nome de Jesus.
Nesta semana, o 20 de novembro como dia nacional da união e consciência negra nos lembra a imensa contribuição das culturas afrodescendentes na construção da identidade brasileira, em campos como a economia, alimentação, arte e relação com a natureza. As comunidades negras, assim como as indígenas, são mestras de resistência. As tradições espirituais afrodescendentes foram fundamentais para fortalecer as pessoas e comunidades negras na consciência de sua dignidade, na coesão comunitária e na sua luta cotidiana da vida.
Precisamos reavivar sempre entre nós a memória do quilombo dos Palmares, massacrado pelo poder colonial. Lembramos a figura simbólica de Zumbi dos Palmares, cuja cabeça foi exposta em praça pública no Recife no 20 de novembro de 1695. Hoje, o Brasil, país que tem a segunda maior população negra do mundo, parece uma imensa senzala que queremos transformar no grande Quilombo Brasil.
As tradições religiosas afro descendentes têm sido as mais fieis guardiães da dignidade e da liberdade das comunidades negras. Para as comunidades cristãs da primeira geração, Paulo escreveu: “É para que sejamos livres que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1. 13). “Onde está o Espírito de Deus, aí tem de haver liberdade” (2 Cor 3, 17).
Obs: O autor é monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares.
É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 57 livros publicados no Brasil e em outros países. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes).