Luiz Carlos Andrade 1 de setembro de 2020

A medicina deve ser sempre exercida a serviço do ser humano, sem qualquer tipo de discriminação e o médico precisa ter sensibilidade para compreender que cada indivíduo, quando acometido por uma mesma doença, pode apresentar manifestações diferentes.  Ao longo do tempo, a pratica médica nos ensina que o fator psíquico não pode ser avaliado separadamente do corpo e, muitas vezes, a conversa com o médico é o primeiro remédio quando a solidão também faz parte do doente.

Este foi um caso muito atípico, mesmo sendo a queixa da paciente, comum e recorrente nos consultórios de clínica médica. Às vezes, uma visão holística nos permite entender melhor os pacientes que sofrem e procuram ajuda. Temos obrigação de ouvir atentamente e examinar cada paciente de forma minuciosa até concluir o que está errado, qual sofrimento vai ser excluído ou aliviado de maneira rápida e segura e depois informar ao doente e à família o diagnóstico, os riscos e os objetivos do tratamento.

A paciente era uma jovem de 18 anos, elegante e de estilo insinuante, com histórico de cefaleia crônica diária desde os 12 anos de idade. Relatava que a dor era forte, iniciando na fronte e se deslocando em faixa para o pescoço e região occipital, com intensidade variável de acordo com a proximidade do período menstrual, obrigações escolares e presença de conflitos familiares. Uma vez por outra as características mudavam e a dor atingia apenas um lado da cabeça, a vista ficava escura e às vezes apareciam náuseas, tontura e luzes piscando. Sentia vontade de morrer quando a dor era excruciante. “Já fui a vários médicos, mas eles não sabem o que fazer e nunca amenizaram de forma demorada a minha dor. Parece não reconhecerem o que eu tenho”.  Já havia sido submetida a diversos exames complementares disponíveis e realizado tratamentos para todos os tipos de cefaleia, sem que nenhum tivesse lhe trazido paz prolongada.

A cefaleia aguda está geralmente ligada a uma agressão imediata e reversível ao organismo e tem duração curta, já a cefaleia crônica, com aumento de intensidade ao longo do tempo, sofre muita influência da personalidade e de conflitos com pessoas próximas. Se os achados clínicos e os exames realizados nada demonstraram, a dor é frequentemente associada a importante fator psicológico. O médico precisa juntar as peças do quebra-cabeças para concluir suas observações. Indaguei: houve algo que você tenha escondido de seus médicos anteriores? As lágrimas escorreram copiosamente dos seus olhos, mas cessaram de súbito. “É muito difícil para mim, explicar o que ocorria. Na primeira consulta, sentia uma agradável sensação de amizade, mas no seguimento o relacionamento era estremecido, eu passava a odiar o médico e fugir das sessões seguintes. Isto ocorreu com todos”.   E prosseguiu:

Eu tinha 5 anos quando meu pai foi assassinado e jamais consegui esquecer a cena: seu corpo estendido no chão, sangue escorrendo na calçada e várias pessoas ao seu redor. Passei a sentir medo, não dormir bem, acordar aos gritos e assustar-me quando chegava à porta da rua, imaginando encontrar meu pai caído na calçada.

Minha mãe virou sacoleira e alguns meses depois ganhei um padrasto que, inicialmente cuidava de mim, quando ela não estava em casa. Logo cedo eu era despertada para ir à escola. Durante o banho, com muita manhosidade, meu padrasto lavava meus cabelos, ensaboava cada pedaço do meu corpo com muita leveza e, demoradamente, minha genitália e nádegas e ensinava-me a lavar seus órgãos genitais. Temendo que eu expusesse os abusos, tornou-se ameaçador, ciumento, possesivo e passou a limitar meus contatos e minhas companhias. Acompanhava, dia a dia, meu desenvolvimento e assim que surgiam pelos nas axilas e região púbica, ele raspava. E, quando meus seios começaram a crescer e os quadris ganharam curvas, ele obrigava-me ficar nua e fazer sexo oral. Eu tinha pouco mais de 13 anos quando a minha menstruação ocorreu pela primeira vez e alguns dias depois ele botou um revolver em minha boca e fui estuprada. Passei uma semana com dor, dificuldade para andar e sentar. Chorei durante alguns dias. Os efeitos psicológicos do assédio e abuso sexual são devastadores e persistentes.

Passei a sentir falta de ar, medo de locais fechados, escuridão e trovões. Agia de modo imprevisível, não conseguia controlar meus impulsos e de forma súbita, tornava-me agressiva e desafiadora. Nesse vai e vem, depois de uma sessão de tortura sexual, perdi os últimos momentos de equilíbrio e rasguei meus livros e quebrei, um a um, meus poucos brinquedos. Meu rendimento escolar foi prejudicado e passei a simular dor para não ir à escola. Quando ia, não participava das brincadeiras e brigava com os colegas. Tudo era tão angustiante que eu não conseguia conectar-me comigo mesma. Não via perspectiva para meu futuro e já não tinha forças para enfrentar o mundo. Passei a roer unhas, morder os lápis, fazer caretas, piscar os olhos, arrancar fios de cabelos. Nos instantes de ansiedade intensa, arranhava meu corpo e cortava minha pele. Suas pisadas no corredor disparavam minha sirene de reações indesejáveis. Amedrontada, meu coração não cabia no peito, a respiração encontrava minha boca fechada e a transpiração molhava o lençol. Eu temia o revolver na boca, mas, dominada, mantinha em silêncio os abusos. Quando ele deixava o quarto eu sentia raiva, tristeza, melancolia e vontade de matar ou morrer.

A narrativa fez minha alma chorar. “Você está ferida, mas seu coração ainda pulsa com muita força. Use de forma sábia as últimas gotas de sua vida e enfrente o monstro. Diga-lhe, com o dedo em riste, voz forte e olhar agressivo, que ao menor toque vai procurar o promotor ou o juiz. E, entre você matar ou morrer, a melhor alternativa é matar. A arma que sua boca tanto conhece também pode conhecer o ouvido dele enquanto ele dorme. O mundo vai    aplaudi-la”. Prescrevi rivotril e prozac e sussurrei em seu ouvido: “jamais vou esquecer esse momento. Decida sua vida e saia do inferno”.

Alguns meses depois a encontrei no Shopping de mãos dadas com seu primeiro namorado. Abraçou-me e beijou-me várias vezes no meio da multidão. Concluí que seguira um dos meus conselhos, mas não o da minha preferência.

Às vezes, em algum momento, somos verdes.
19 de maio de 2020

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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