Corre o rio da minha vida. As vezes tranquilo, as vezes em grandes tormentas, contornando as montanhas, caindo em cascatas, mas seguindo em frente. Busca incessantemente encontrar o mar. Não porque este lhe acolherá suavemente, calmo, mas porque é o seu destino e ele precisa incorporar-se ao mar.

Às margens vejo paisagens maravilhosas:

Passam as riquezas do meu tempo de criança. Lembro o revoar das andorinhas, que sempre voltavam às redes elétricas, próximas à igreja e das oficinas, formando aquela linha interminável de aves, num lindo preto e branco.

Olho para outra margem vejo o nosso carnaval. Os bonecos de Casaca,  os cabeções que assustavam as crianças, mas enriqueciam as alegorias daquele carnavalesco autodidata. Lembro dos passos majestosos do porta estandarte do bloco Águia de Ouro, que ao chegar em uma casa  que se dispunha receber o bloco entoava: “Oh senhor dono da casa o senhor pode me escutar? Oh senhor dono da casa o senhor pode me escutar?  Porque o Bloco Águia de Ouro em sua casa quer brincar. Porque o Bloco Águia de Ouro em sua casa quer brincar.”. Seguia-se então um apito e o toque do surdo “tum dum” e a folia começava.

Recordo que fiz parte da “banda” que tocava no bloco: Eu (trombone), Ademir (trombone de vara), Guido (clarinete) e Roberto (trombone), além dos membros que se revezavam no surdo, no tarol, no caixa e no ganzá. Nós recebíamos um tratamento “VIP” quando chegávamos às casas. Nossa bebida e nossa comida eram especiais. Éramos tratados como os “músicos do carnaval”. Voa, voa tempo carnavalesco, o rio continua a seguir.

Após o período carnavalesco vinha a Páscoa, momentos de muita paz e reflexão. Renovávamos nossas promessas, nossa fé, nossas esperanças. Nesse período as imagens dos santos deviam ser cobertas com um tecido roxo, em respeito a paixão de cristo. Além desses momentos religiosos, vivia-se também quase um festival gastronômico. Cada família elaborava um tipo especial de comida, ressalvando-se  a ingestão de carne,  que não poderia ser saboreada no período da semana santa.

Ah que delícia. Nesse período era um festival de peixes e aparecia o bacalhau. O interessante é que no nosso período de jovem/adolescente o bacalhau era um produto relativamente barato, chegando mesmo a ser considerado uma “comida de pobre”. Nós comíamos, mas era quase um segredo. Eu sempre adorei, especialmente quando era servido como bacalhau em caldo, no leite de coco.  Ah que tempo bom,  que nos enche de saudades.

No mês mariano o sucesso se devia as noites na igreja que eram dedicadas a cada  família local. Um verdadeiro desafio  para elas, porque cada uma queria que sua noite fosse a mais bonita. As famílias enfeitavam  a igreja,  na noite que lhe fora dedicada e eram responsáveis por “puxar” o terço naquela noite.

Essas noites me levam ao Senhor Farias, o exímio jardineiro que cuidava das flores do nosso colégio. Nesse período de Maria todos recorriam a ele, para ter aquelas rosas magníficas que ele produzia com tanto carinho e dedicação. Coitado de Senhor Farias, como sofria  “pressão” para fornecer aquelas flores lindíssimas.

Vem chegando o São João, preparem os trajes que o “arraiá” vai ser de arrombar a boca do balão. Passávamos quase todo semestre ensaiando a quadrilha na nossa escolinha primária, para fazer bonito, no dia da festa. Nem sempre ficávamos muito felizes com os (as) nossos  (as) parceiros (as) de quadrilha, porque quem escolhia eram as nossas professoras, especialmente Dona Erundina que era a “coordenadora” da festa. E ficávamos só esperando, durante a quadrilha, o Chã de Dama para abraçar aquela pessoa que gostaríamos que fosse nosso (a) parceiro (a). Mas finalmente a festa era um enorme sucesso e agente terminava muito feliz.

Já no período de jovem/adulto a grande festa era no Clube X.  Ainda era apresentada a quadrilha dos jovens da escolinha, mas já criávamos a nossa quadrilha de improviso. Assim a chance de dançar com a parceira pretendida era maior, mas o diacho é que as vezes chegávamos atrasados para o convite e ainda pior, podíamos ter a desilusão daquela parceira também ter o par preferido dela.

Nas férias, que bom, nós tínhamos os esperados “pic nics”.  Íamos à praia, ao Monte das Tabocas, ao engenho São Severino dos Ramos,  ao Parque Zoobotânico de Dois Irmãos, sempre havia um lugar para passarmos um dia de muita festa. Nesses “pic nics” acontecia até uma paquerinha.  Muito bom.  Por algum tempo, antes da chegada do ônibus  ao colégio, a viagem era em um pau de arara. O caminhão era cuidadosamente preparado, com tábuas  que servia de bancos e uma cobertura de lona, o típico pau de arara mesmo. E na viagem seguia-se a cantoria: ave ave, ave Maria, ave ave, ave Maria…

Um fato que não posso deixar de mencionar era a preocupação das professoras com a subida para o caminhão por intermédio de uma escada: os  meninos sobem primeiro, depois as meninas. Por que seria essa preocupação? As damas não são sempre primeiras? Era para evitar que os meninos ficassem “brechando o lance”  na subida das meninas.

No período de férias outro grande motivo de muita alegria para a juventude era os famosos “assustados”, quando resolvíamos ir à casa de alguma família e realizávamos uma festa inesquecível. Todos participavam com algum produto, comida ou bebida que levávamos para aquela festa. Um fato que acredito poder revelar hoje é que: nem sempre o assustado, de fato, era surpresa aos donos da casa. Quase sempre um dos elementos do grupo, concordava com a festa e assim disponibilizava a casa para a festa, mas para os pais todos enfatizavam que era uma surpresa.

Não gostaria de esquecer de citar nenhuma família, mas talvez cometa essa injustiça, a memória pode me trair, mas dentre de alguns assustados realizados nas casas de algumas famílias, pode-se citar: como  na casa do senhor Severino (Biu Motorista), na casa de senhor Rubem (Dona Acidália era nossa cúmplice), Na casa do senhor Honorato (Rita era a responsável), na casa de senhor Manoel Luiz (Marceliano meu velho amigo, tenho que lhe entregar). Enfim tínhamos muitas famílias que nos acolhiam para nossos maravilhosos assustados. As vezes nós dançávamos até com um radiozinho de pilha. O importante era estarmos juntos, dançando e paquerando.

Ainda no período de férias me recordo da primeira televisão no município, adquirido pelo Dr. Airton. Dezenas e dezenas de pessoas iam à casa dele para assistir televisão. Os programas eram bem variados, mas  na hora dos programas infantis como: Lesse, Zorro, Rim Tim Tim,  Papai sabe tudo, Ivanhoé, Robin Wood, dentre outros, Dona Carminha chegava a colocar uma esteira na sala para acomodar a criançada. E as vezes ainda servia um lanche. Que encanto a televisão aquela época.  Mas vamos seguir o curso do rio.

Como não lembrar dos nossos grandes espetáculos que realizávamos com os nossos artistas locais que apresentavam declamações, pequenas peças teatrais (os esquetes), cantos (Maria Augusta presenteava a todos com sua bela voz e sua majestosa interpretação), o glamour do nosso ballet que ensaiei, com o apoio da bailarina Fátima Beltrão, dançando a música sucesso da época: o milionário, que beleza. Eram grandes shows. Me recordo bem do último espetáculo que realizamos, quando já tinha sido anunciada a inundação pela barragem do Tapacurá: no final do show montamos um cenário com um barco em um grande rio, com todos os integrantes se despedindo, cantando uma canção de adeus: Quem parte leva saudades de alguém …

Na Semana da Pátria quantas comemorações. Os alunos da escolinha primária desfilavam com todo aquele garbo. Os ensaios eram longos e cansativos, mas a honra do desfile é indescritível. Os nossos pais ficavam com olhos marejados e quase explodindo de emoção. Lindo. Salve o sete de setembro.

No colégio durante esta semana ocorria uma verdadeira olimpíada, com grandes torneios desportivos: corrida a distância (os corredores eram levado em um carro até o engenho Oiteirão e  de lá vinham correndo até o colégio – cerca de quatro quilômetros), corrida de saco, corrida da colher no ovo, salto em altura, salto a distância, salto com vara, voleibol, futebol de salão, futebol de campo, etc. etc. Um grande torneio em comemoração à semana cívica e festiva de setembro.

Aos domingos, durante todo o ano, vivendo nossa religiosidade, nós éramos convidados a santa missa na igreja do Sagrado Coração de Jesus. Os sinos que dobravam lindamente, únicos em toda região, tocavam duas vezes: a primeira era a “chamada”, 20 a 30 minutos depois tocavam a “entrada” em seguida a missa era iniciada. Os padres celebrantes eram Dom Agostinho, Dom Basílio e Dom Bernardo, tendo como ajudantes o Irmão Fidélis (que ensaiava e regia o coral) e muito posteriormente o Irmão Paulo. E o sítio dos padres? Ah que delícia onde “capturávamos” goiabas e figos. E a nossa professorinha de catecismo Dona Ester? Quanta dedicação e paciência com aquela criançada travessa. Quantas saudades.

Outro grande momento aos domingos, agora festivo, eram as grandes partidas de futebol do nosso time o glorioso Arsenal Futebol Clube. Nós formávamos um bom time. Por mais de um ano ficamos invictos, na região, ganhando dos times de toda vizinhança, como da Usina Tiuma, de Tapera, dos Engenhos Veneza e Oiteirão, da cidade de Glória de Goitá. Só não ganhávamos do time dos alunos do colégio. Era um azar danado, quase sempre perdíamos, não tinha jeito.

Tínhamos  várias festas dançantes no período de férias no famoso Clube X,  mas a festa mais aguardada durante todo ano, sem dúvida, era a festa de formatura do colégio. O baile era realizado onde, no período de aulas, funcionava o dormitório dos alunos, mas quando se aproximava o final de ano o mesmo era transformado em um grande salão de festas, onde se organizava as mesas para os formando e suas famílias. Era uma festa fantástica, grandes bandas de toda a região tocaram nesta aguardada festividade de formatura.

O rio da minha vida continua sua trajetória e ao olhar para outra margem, já vejo as luzes do natal. Que período magnífico, não só pelo seu significado, mas também por toda as festividades que ocorriam. E como não lembrar do lindo presépio que Irmão Fidélis montava, com tanto esmero, na igreja que nos encantava. Que maravilhoso símbolo do nosso natal. Hoje aquele presépio encontra-se na paróquia de Chã de Alegria.

Em frente da igreja era “montado” um verdadeiro parque de diversão, com o famoso carrossel que era totalmente manual, empurrado pela força de alguns contratados pelo dono do mesmo  (empurra Tatu).  Nesse tempo acho que até criamos um vocábulo próprio, pelo menos não o conheço formalmente: “amorcegar” no carrossel. O que isso significava? Pegar o carrossel já em movimento, por não ter pago o ingresso. Não raras vezes o “fiscal” puxava o cabra pra baixo pela cintura e era uma grande gozação.

Nas roletas perdíamos quase todo o nosso trocado. Sorte daqueles que eram agraciados com algum dos prêmios dessas roletas. Será que as roletas eram “viciadas”? Quase ninguém ganhava. Os poucos trocados que sobravam nós gastávamos na barraca de tiro ao alvo, ou na barraca de pescaria, na tentativa de ganhar um prêmio pelo feito com sucesso.

Quem poderia esquecer as famosas canoas/gangorras que eram movidas pelos braços dos passageiros, puxando uma corda? E o bom rapaz, querendo impressionar a parceira, se arrebentava de puxar aquela corda, para que o balanço fosse cada vez mais forte.

As barracas naquela festa serviam quase de tudo, milho, pamonha, canjica, milhos verdes cozidos e assados, mungunzá, paçoca, caldo de cana, pastel, creme de galinha, coxinha, tapioca, sanduíches diversos, até mesmo caranguejo. Era oferecido de tudo e graças a Deus eram saudáveis. Não me lembro de nenhum problema de saúde com esses produtos. Se alguém teve, ficou calado.

Como não lembrar do serviço de som do locutor Genaro nessas festas, quando com sua voz possante anunciava uma música: “de alguém para outro alguém, com muito amor e carinho” e tocava então uma música romântica para aquele alguém que tinha um admirador (a) apaixonado (a). Quanto romantismo no serviço de som.

Seguindo o curso do rio da minha vida, a próxima paisagem era o ano novo. Uma grande festa e muitas saudações de Feliz Ano Novo. Tudo era renovado, desde as promessas, até os sonhos. Sigo tranquilo em meu rio, vivendo o trajeto que me fora traçado, esperando percorrer por muito tempo meu leito, até chegar ao meu mar, que espero ser de rosas e que eu cumpra o meu destino e possa incorporar-me ao mesmo.

Obs: O autor, Prof. Dr. Rômulo José Vieira é Acadêmico da Academia de Ciências do Piauí; Acadêmico da Academia de Medicina Veterinária do Piauí; Acadêmico correspondente da Academia de Medicina Veterinária do Ceará; Acadêmico correspondente da Academia Pernambucana de Medicina Veterinária.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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