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XII /

          Dez para as doze ou doze e dez? Rezo com o sol a pino ou espero o entardecer?

         Do outro lado, sob o quadro O Lobo e a Ovelha, de Vicente do Rego Monteiro, encontra-se ele, unhas grandes, a barba extensa, lobo que atravessará a mesa do café para me engolir? Bem que minha mãe falou às escondidas para eu não falar às claras com estranhos, porque quando falo mostro o branco dos dentes, lábios tremem, os olhos piscam.

          Não quero acordar daqui a mil anos numa praia deserta, o corpo enrugado de ondas e grãos de areia. Pudera esquecer que um dia ele se disse inteiro e eu percebi, lá no fim do túnel, um diamante bruto, usei das frases e coragem para ir limando, limando. Às vezes ele me escrevia versos, oferecia flores, apontava estrelas – me prometia algumas, iria buscar com Adão e Eva, ou nos braços da Deusa-Mãe de todos os homens.

          Quem dera eu ainda acreditasse em contos de Natal, ele desenhasse meu rosto com a ponta dos dedos e me fizesse mulher numa tarde de sábado; viria a noite, a madrugada, detentora das angústias, pesadelos, ele não estaria lá, sob o quadro O Lobo e a Ovelha, de Vicente do Rego Monteiro, do outro lado da mesa do café, unhas grandes, a barba extensa, lançando em meus olhos raios e trovões, jogando por sobre a rede de sentimentos uma história construída a quatro mãos, seis estrelas, dez para as doze ou doze e dez.

Déjà-vu

          Parece mentira o que vou lhe contar. Uma verdade captada por uma pessoa distraída feito eu?

          Dizem que a amiga de uma amiga minha – será Rita o nome dela? – conheceu em Paris Vicente do Rego Monteiro. E tem mais: casaram-se às escondidas, apenas ele, ela e o padre de testemunhas na Eglise St-Julien-le-Pouvre, uma das mais antigas da cidade. É bem pequena, feita de madeira no estilo barroco, quase vejo anjos querubins abençoando os noivos, sonhadores, com uma vida toda pela frente para que ele a tatuasse inteira, uma flor de lis no pulso e…

          Tatuasse? Pelo que ouvi falar, Vicente foi pintor, poeta, escultor, tipógrafo, editor, mas tatuador? Não sei se um riscava no outro provas de amor eterno, como se amar provasse alguma coisa. Amar não se prova, se sente. E o amor não é sentimento, é uma atitude. E atitudes não se dizem, se fazem. E por que estou escrevendo tudo isso para alguém que não conheço, que talvez nem saiba dessa história de Maria Rita e Vicente, que tatuava a esposa em Paris, e de repente morreu um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos.

          Será que era isso mesmo o que eu queria dizer?

Musselina

          Escrevo no escuro palavras germinais. Elas preenchem a folha em branco, fluindo de um lado ao outro até desembocar na cachoeira do mais profundo eu.

          Escolho versos soltos, eles pintam céus, Adoração dos Magos, ave-marias, e a Santa Mãe me acolhe nos braços virgens, não me sinto só.

          A cada letra desenhada entendo um pouco mais, pois preciso encontrar sentido para continuar caminho. Depois do sentido, aceitação, depois a morte, e um outro alvorecer.

          Deslizo da tela para o caderno na esperança de me fazer são, lúcido, prestes a descobrir um novo signo envolto na musselina rubro-azul do manto de Maria.

          Naquela estrada, uma montanha, verei A Assunção da Virgem do texto à última pincelada, onde encontrará o Filho amado, Reino dos Céus, e uma coroa de espinhos de quem escreve no escuro palavras germinais.

Óculos

                                                                        Para Thomaz Lôbo

Ele acendeu o Jardin du Luxembourg na memória.

Às vezes lembrava o que não havia acontecido com uma certeza que transparecia cores, aromas, frioquente.

Um canteiro de papoulas róseas deitadas sobre a grama fresca. Ali cavava o solo escuro até encontrar uma fresta para o outro lado do mundo.

Quando queria o ocre buscava no deserto do Saara, piscava areia, piscava oásis, e a cor de telha explodia no olho. Ficou parado por um tempo de recomeço, e saiu do lugar porque um vaga-lume enverdeceu a mão esquerda, aquela que tomou a tela e pincel para manifestar o arco-íris.

Não havia prece ao partir o pão, e os trabalhadores esfomeados surgiam de todos os cantos, trazendo os músculos salientes, a força emanava dos pulmões arquejantes, em arco poliam os céus com flechas de fogo e por centelhas de instantes procuravam a paz no coração dos homens de boa vontade.

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* Textos extraídos e participantes do livro Quatro faces de um encontro – Vicente do Rego Monteiro, 2008, Editora Calibán.


** Rita, A Assunção da Virgem e Mesa com vaso de orquídea – Telas de Vicente do Rego Monteiro.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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