Nas décadas de 50 e 60, Itabaiana era uma cidade pequena com aspecto de vilarejo simples do interior: atmosfera agradável, aconchegante, embelezada pela presença de pequenas montanhas nos seus arredores, três dezenas de ruas estreitas com casas baixas de platibanda e divisões com arrumações em pedras de dominó, projetos assinados pelos arquitetos práticos Eduardo Pompeia e Anísio Sabará. Da época de vila, resistiam, com corrosões, alguns bangalôs e sobrados elegantes.  A Praça dos Amores, um verdadeiro jardim, e a Praça da Santa Cruz, com eucaliptos centenários, completavam a cidade. Muito raramente havia notícias de violência urbana, doméstica ou escolar e as desavenças eram resolvidas, corpo a corpo, nos botequins e nos bares. As mulheres, sorridentes e prestativas, com bobes na cabeça para cachear os cabelos, sentavam nas calçadas a catar piolhos e espremer espinhas. A luz e o calor do sol, associados à fertilidade da terra, direcionaram o itabaianense para agricultura, inicialmente, até aflorar do DNA, o dom para os negócios. E, quando o comércio trouxe crescimento econômico e social consideráveis, a cidade atraiu gente de todo canto e a mistura produziu arranhões em nossa identidade.

Início da violência – Euclides Paes Mendonça, sempre sonhou em participar da vida pública e logo tornou-se uma liderança forte em Itabaiana, sendo transformado, ao longo de sua trajetória, num dos grandes políticos do Estado. Inteligente, totalitário, empolgado, excessivamente expansivo e quase sempre voando alto. Falava em tom elevado e facilmente mudava de foco com palavras e frases vazias. Sedutor e dono de exagerada expressividade sexual, vestia-se descuidado e vez por outra era flagrado com o alinhamento da casa da camisa com o botão trocado, após as relações amorosas. Se lambuzava durante as refeições e quando dormia, os roncos eram ouvidos da calçada. Não fazia restrições financeiras nas campanhas políticas nem nas festas de posse e comprando curral fechado, foi eleito Deputado Federal, elegeu seu filho Antônio Deputado Estadual e José Sisino de Almeida, Prefeito Municipal. Impulsivo e sem remorsos, na posição que se encontrava nada devia limitar suas ações e quando queria alguma coisa deveria recebe-la sempre, sendo as objeções contrárias ao seu ponto de vista, consideradas delírios de inimigos e tratadas como tolas. Nas mãos mantinha um grupo de “mercenários estrangeiros” procedentes do Crato e Serra Talhada, a delegacia de polícia, a justiça, o fisco, os cargos do Estado e do Município e ninguém poderia ser uma ameaça aos seus desejos. Mentia e com habilidade para manipular os outros, estimulava maldades cruéis e frias sem limites, transgredia normas e leis, dando feição pessoal a tudo. Suas atitudes assombravam e faziam tremer: mandava bater, torturar, prender e os detentos carregarem água em latas furadas. Tinha poder para vencer os mais difíceis obstáculos e ao seu juízo, separava o joio do trigo fazendo os adversários pagarem impostos e os defensores de suas opiniões e ideias passarem contrabando e, sem a menor cerimônia, com voz de trovão, resolvia situações ridículas e decidia quem era obrigado a casar ou pagar indenização se “furasse” uma donzela. Não rezava missa, mas tinha presença frequente nas celebrações da Igreja e fazia intromissões: marcava os horários dos batizados, das novenas, ornamentava a imagem de Santo Antônio e carregava o andor, puxando a procissão entre os sacerdotes.

As instituições, Executivo, Legislativo e Judiciário, desidratadas e menos salientes, fechavam os olhos e nenhum de seus atos descabidos merecia um pio, muito menos reparação. A polícia, confundia-se com o próprio Euclides e nunca foi fonte de segurança, mas quase sempre fonte de ameaças e medo aos pessedistas. Autoritário, não permitia críticas, protestos, muito menos rebeliões, greves e passeatas de estudantes pelas ruas a pedir “água para todos”, estimulando o povo a refletir sobre direitos, deveres e as necessidades humanas mais elementares e prioritárias. A passeata de 08 agosto de 1963, foi interrompida com o fuzilamento de Euclides e seu filho.

Dentro e fora de Itabaiana seus adversários comemoraram e os oprimidos, antes em silêncio, começaram a botar a cabeça de fora. Entre esses, Antônio de Libânia, um pequeno comerciante, inicialmente de camisas “Banlon” e “Volta ao Mundo”, notáveis e impecáveis, e por último dono de um bar. Onde Tonho chegava, sentia necessidade de falar com as pessoas e gabar-se de que ao contrário dos pessedistas, reservados e reticentes, nunca temeu Euclides e jamais sentiu medo de suas bravuras. “Ele sabia me respeitar e nunca mexia uma palha para acalmar minha oposição. Sempre saí pelas ruas, mesmo durante as madrugadas, rondando a periferia à procura de encontros amorosos e quando o seu Jeep me avistava, desviava-se de meu caminho”. Durante as conversas fazia movimentos constantes com o corpo para deixar visível o revolver em sua cintura e a todo instante ajeitava a arma.

Tonho distribuía fama de destemido, namorador e viciado em encontros com garotas vadias, de programas fáceis e sem responsabilidades. O juazeiro frondoso, sempre de verde intenso e carregado de juá, localizado ao lado do Cemitério das Santas Almas, era o motel preferido para uma transa fácil e rápida. A notícia de que Tonho e a mocinha, empregada na casa do exator, fariam uma sessão de amor durante à noite, vazou e chegou aos meus ouvidos. Convidei Gustinho e Carlinhos para abortarmos o ensaio sexual. O caminho de barro e lama, dentro do matagal, estava muito úmido, mas chegamos ao juazeiro antes do anoitecer e cada um, com sua garruncha de dois canos na mão, tomou uma posição diferente. O clarão de um poste de iluminação, a mais de duzentos metros, na esquina de João da Marcela nos mostrou a chegada de Tonho de Libânia e seus primeiros passos na direção do local acordado. Mesmo na semiescuridão foi possível perceber sua aproximação e disparamos as garrunchas apontando-as para o céu. Ele desembestou de volta, por cima de paus e poças de lama, caindo e levantando-se algumas vezes. Em torno do poste, formou-se um aglomerado de pessoas curiosas para ouvir os detalhes do que havia ocorrido.

No dia seguinte, antes do café da manhã, minha mãe acordou-me com uma notícia de última hora: “a cidade está de queixo caído. Ontem à noite tentaram matar Tonho de Libânia, mas está tudo bem com ele. Estão acusando o pessoal da UDN e dois suspeitos estão presos.” Senti frio no estômago, tremer as carnes do corpo e o coração pular. Queria apenas me divertir após bloquear o encontro sensual e sentia minha alma leve e gratificada. Entretanto, a cidade estava inquieta, o que proibia a comemoração da brincadeira de mau gosto junto aos melhores amigos. Saí às pressas para conversar com meus cúmplices e alertá-los: estamos maravilhados pelo nosso objetivo, mas brincamos com coisa séria e todo segredo é pouco. Devemos manter boca de siri.

Decorridas duas décadas, entrei em seu bar para fazer um lanche e fui cumprimentado com muita alegria. Após uma boa conversa, perguntei-lhe: Tonho quando eu era adolescente tentaram lhe matar! Quem foi? A resposta veio de pronto: “Matadores de aluguel. Foi um duelo que jamais esqueci. Fui cercado por quatro ou cinco pistoleiros bem armados, mas eles não esperavam encontrar um homem com sangue nos olhos e coragem para enfrentar um leão. Troquei tiros e eles amedrontados, fugiram, mato a dentro, e nunca mais botaram os pés em Itabaiana. Meu primo!!! Ninguém bole com a gente!!!” Antes de sair do bar, dei-lhe um abraço e sussurrei em seu ouvido: ninguém mexe com você, meu primo. Eu sou frouxo. Sua gargalhada frondosa tomou o bar.
Aracaju 01 de Fevereiro de 2020

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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