Sonhar.
Na noite entre 22 e 23 de agosto de 1966, O Padre José inspira a Helder Camara uma série de poemas que tratam do ‘sonho acordado’.
Medi teu desalento
Ao ver-te desejar
Sono sem sonhos…
Saberás o que é sonho
Ou até agora
Só conheces pesadelos? (Carta Circular 22-23/8/1966, III, II, p. 144)
Quando permites
Que se abram fendas
Em todas as minhas cisternas,
Queres que eu não esqueça
O caminho da Fonte (ibidem, p. 144)
Sonhador?
Mas quem te assegura
Que o sonho
Não é
Não só
A parte mais bela da vida,
Mas a mais profunda,
A mais verdadeira,
A mais real? (p. 145).
Esperança sem risco
Não é esperança.
Esperança
É crer na aventura do Amor
Pular no escuro,
Confiando em Deus (p. 146).
Acolher.
Ao contemplar o famoso ícone ‘da Santíssima Trindade’, pintado pelo monge artista russo Andrei Rublev no final do século XV dC, o poeta Helder se sente inspirado:
Nos três peregrinos, Abraão,
Que passaram em tua porta,
Entreviste
Mensageiros divinos,
Ou, quem sabe,
Pressentiste
A Trindade Santíssima
Que o Filho do Homem
Revelaria aos homens.
Bastou isso
Para nos dar uma lição
De acolhida perfeita
Em que portas e corações
Se escancaram (Carta Circular 20-21/7/1974, VII, I, 171-172).
Perdoar sempre.
Ao mesmo tempo em que os grandes meios de comunicação, nos ‘anos de chumbo’, espalham por todo canto ódio ao ‘bispo vermelho’ e a tudo que ele representa, Helder redige um poema absolutamente inesperado, em que pede perdão…ao ódio.
Perdoa, ódio,
Ofendi-te
Imaginando-te
O anti-amor
O anti-Deus.
Faltou-me sensibilidade
Para descobrir
Que és amor.
Amor ferido,
machucado,
pesado,
revoltado,
mas amor (Carta Circular 14-15/3/1974, VII, I, p. 82).
O pessoal da igreja é tentado a condenar o regime militar que governa o Brasil, por causa das injustiças gritantes e das perseguições. Helder conversa a respeito com Deus e não teme em discordar do texto evangélico:
Mandaste que teus apóstolos,
Quando mal recebidos
Em uma cidade,
Sacudissem sobre ela
O pó das sandálias…
Perdoe,
Mas nem parece
Ensinamento teu.
Não repeliste
O desejo dos apóstolos
Em ver fogo do céu
Chover
Sobre uma cidade injusta?
Ensina-nos
A jamais
Perder a esperança
E a repelir
Até sombra de sombra
De qualquer desejo
De condenação (Carta Circular 4-5/5/1974, VII, I, p. 126).
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.