2 – Todos São Pessoas Únicas

 “Felizes sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim.  Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguirem os profetas, que vieram antes de vós”. (Mt. 5, 11)

Toda atividade atípica, no início, gera um pouco de desconfiança e resistência. Tratando-se de uma organização diferente, cujos membros eram menores que vinham de situações familiares complexas e desafiadoras, alguns da sociedade santarena começaram a fazer comentários de que essa nova organização “passava a mão na cabeça” dos menores e os dava mais “coragem” a continuarem no seu estilo de vida, estilo que “atrapalhava” o sossego de alguns.  Mesmo assim, diante deste desafio, a equipe, com Fé na Divina Providência, foi perseverante no acompanhamento.

Um grupo de alunas do Colégio Dom Amando, me aproximou um dia perguntando se elas poderiam preparar um lanche para os meninos, no dia de sábado. Eram as gêmeas, Dilvaneia e Dilvanei Lima, junto com a Marcela Tolentino e Jaqueline Matos.  Eu aceitei a proposta delas com muita gratidão, porque os meninos passavam muito fome trabalhando na praça. Eles também foram muito gratos por este gesto de fraternidade. Elas se entrosavam bem com os meninos e eles ficaram se sentindo valorizados.

Os encontros com os meninos se davam de forma alegre, eram bem receptivos. Sempre iniciávamos os encontros com uma oração do Pai Nosso. Incentivávamos para que os encontros fossem um momento de contato pessoal entre eles e a nossa equipe. O receio de darem as mãos na hora da oração era perceptível; entre eles não existia este tipo de contato fraterno. O que aceitavam, e  gostavam de dar, era um abraço forte ao marcar um gol nas partidas de futebol. No entanto, com o passar do tempo, foram deixando de lado tal preconceito e já participavam da oração do Pai Nosso com firmeza, concentração e devoção.  Considerávamos isso um grande avanço, a chave que iria permitir que suas atitudes se tornassem mais fraternas. Para a equipe, não foi estranha esta mudança, pois quem abre um espaço para Deus fazer parte da sua vida, maravilhas acontecem.

Eles foram se soltando mais, percebendo a necessidade das relações fraternas e o porquê de fazer necessário criar e fortalecer os laços familiares. A orientação da equipe era sempre cultivar a amizade, sempre respeitando o espaço do outro, bem como o outro na sua identidade única.

Esse momento também era oportuno para orientá-los, à medida que iam surgindo as demandas trazidas pelos próprios menores.

A partir desses encontros os menores sentiram-se bem acolhidos e valorizados, tendo a oportunidade de receber orientação sobre como enfrentar os desafios: na família, no trabalho, na escola, nos conflitos internos e pessoais, com outros menores de outros categorias, ou alguns que queriam entrar no espaço deles para ter uma oportunidade de trabalhar e ajudar suas famílias.  Assim foram sentindo-se mais seguros, com mais autoestima e conhecedores de suas fraquezas e seus potenciais.       Também foram reconhecendo o quanto eles eram importantes para Deus, para eles mesmos, para suas famílias, para nós da equipe, para a sociedade como um todo, cada vez mais conscientes de seu valor, de suas capacidades. Eles poderiam contribuir para construir uma sociedade melhor, para eles mesmos e para todos que faziam parte de sua história.

Alguns menores gostavam de ser reconhecidos por um apelido, um nome que se identificasse com alguma característica da sua pessoa e que o destacava no grupo; ou de ser notados por um nome que dava medo nos outros e assim se valorizava por isso. Pensavam que se tornavam importantes porque davam medo nas pessoas ao ouvir seus apelidos. Alguns preferiam ser conhecidos deste jeito em vez de serem conhecidos por fazer algo de bom, promovendo um convívio fraterno.  Nós trabalhamos com eles sobre isso e procuramos fazer com que usassem seus próprios nomes, (João, por exemplo) para identificar a sua pessoa, nome escolhido pelos pais quando nasceram.  Assim conseguimos ajudá-los a valorizar mais e fortalecer sua identidade na família, na escola e na sociedade.

Com o passar do tempo os menores se sentiam mais valorizados quando chamados pelo próprio nome. Isso ajudou para que dessem mais importância à sua história, começassem a ter um pouco mais de respeito por si próprios e pelos outros. Essa autovalorização foi mais um ponto de partida para que desenvolvessem ainda mais sua autoestima.

 Vale a pena lembrar que no início estávamos acolhendo menores de sete (as vezes 5 e 6) a dezoito anos. Alguns dos maiores, influenciados por alguns aliciadores, estavam articulando a organização de pequenos grupos – “gangues” – com a intenção de roubar, criar confusão no comércio, usar e traficar drogas, maconha, cheirando cola e até chegar ao uso de drogas mais pesadas, como a pasta de cocaína. Nosso trabalho naquele momento da história foi importante e preventivo.

Na defesa dos direitos dos menores, e devido o envolvimento dos aliciadores com brigas e até assassinatos, tivemos que tomar uma atitude mais radical para proteger os menores das táticas dos aliciadores. Frente a essas realidades, tivemos que acionar a polícia para que, amparados pela Lei, tivéssemos uma melhor solução dos problemas.

Essa era a realidade dos anos “80”, antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Não foi fácil criar um espaço de diálogo entre as partes, menor-infrator e os pais e responsáveis com a polícia e a juiza, além de outras autoridades envolvidas durante o processo de avaliar a situação do infrator: a infração cometida e a punição.

Antes do ECA, não tinha nada estabelecido para encaminhar o menor infrator, avaliar a sua situação e acompanhá-lo num processo que viabilizasse sua possível recuperação. O que existia era o antigo “Código do Menor” que dava um tipo de receita para ser aplicada de acordo com cada infração. A “metodologia” da época era muito marcada pela lei antiga de “Olho por Olho, Dente por Dente”.

Nesta mesma época alguns policiais tinham o costume de resolver os conflitos na base da violência, embasada na antiga Lei. Eles acusavam os outros policiais que tratavam os menores com mais respeito, de que queriam abrandar a Lei tratando os menores de maneira “frouxa”. Também acusavam a PAMEN de não agir de forma correta e de passar a mão na cabeça das crianças e adolescentes infratores, abrindo precedente para que cometessem mais infrações, pois no entendimento desses policiais, os menores tinham o amparo da PAMEN.

Obs: Texto retirado do Livro do autor Pastoral do Menor, com a sua autorização.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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