(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Quando chega o Natal há uma insistência contumaz em temas de concórdia, paz, consenso e solidariedade.  Natal não é momento de conflito e dissenso.  Há que buscar, outrossim, caminhos de concórdia, superando as desavenças familiares, eclesiais, políticas ou que tais.

 No entanto, no imaginário sobretudo infantil, mas não menos no adulto, a concepção do Natal repousa hoje sobre um conflito dificilmente reconciliável: Papai Noel ou o Menino Jesus? Enquanto muitos de minha geração ouviam falar de Papai Noel, montavam a árvore, mas tinham o foco da festa sobre o presépio e o Menino recém-nascido, hoje estes são senão ignorados pelo menos obscurecidos pelos presentes sob a árvore. E sobretudo pelo Papai Noel que vem em meio a 40 graus de temperatura, em pleno verão, vestido para o mais rigoroso inverno do hemisfério norte.

Nem mesmo o senso do ridículo de um velho de barbas brancas vestido de roupas quentíssimas em meio ao calor desperta o já intumescido senso crítico de adultos e pequenos, que adejam em torno de símbolos natalinos totalmente estranhos ao trópico, ávidos pela troca de presentes, que se tornou o momento álgido da festa.  Comer e gastar: infelizmente esse é o lema em que se transformou o Natal, sob a batuta do bom velhinho que vai aos shoppings e tira fotos com as criancinhas no colo. E isso nos revela tristemente que estamos rapidamente involuindo para um neo paganismo. Expulsam-se as tradições religiosas e culturais que fizeram nossa civilização, para dar lugar a seres lendários e mágicos que possam povoar nosso imaginário de magia e crenças supersticiosas em maior ou menor grau.

Quem é Papai Noel.  Trata-se de figura lendária cuja existência encontra sua origem em contos hagiográficos tendo ao fundo a figura histórica de São Nicolau. Varia e tem simulacros em outras latitudes, como na Grécia, onde em 1 de janeiro, celebra-se Basílio de Cesareia, respeitável padre da Igreja, responsável pela teologia do Espírito Santo no Credo Niceno-Constantinopolitano e que jamais deve ter imaginado que iriam associar seu nome à troca de presentes na festa natalina. Já na Espanha e nos países de língua espanhola em geral, o dia dos presentes é 6 de janeiro, quando são celebrados os Reis Magos. A data tenta preservar a conexão com o Cristianismo, já que os três sábios do Oriente levaram ao Menino presentes carregados de simbolismo: ouro, a realeza; incenso, a divindade;  mirra, a humanidade.

Miméticos que somos dos estadunidenses e nórdicos, ficamos com o Papai Noel da neve, do Norte, que teve sua imagem associada à Coca Cola e a todas as marcas comerciais possíveis e imagináveis.  Fazemos neves de algodão, rodeamos o velhinho de renas (animal inexistente em nossas paragens) e caímos de boca nos presentes, fazendo listas e percorrendo-as de alto a baixo. Até de São Nicolau, responsável pela origem do Papai Noel nos afastamos, uma vez que este era arcebispo de Mira, na Turquia, e viveu no século IV.  Destacou-se pela caridade, ajudando anonimamente os pobres, distribuindo moedas de ouro pelas chaminés das casas.  Sua transformação em símbolo natalino ocorreu na Alemanha e a partir daí correu mundo.

São Nicolau, com seus trajes de bispo foi substituído pelo velhinho de roupa vermelha e botas.  Mora numa terra de neve eterna, ou em sua casa no Polo Norte.  E tem até uma esposa, Mamãe Noel, que não tem tanta popularidade entre nós. O que tem, sim, popularidade nos trópicos é seu séquito de renas voadoras, que trazem num trenó os brinquedos para depositá-los nas chaminés, e os elfos mágicos que os fabricam, todos vindo ao encontro dos desejos daqueles que têm poder aquisitivo, inundando as casas e as festas natalinas.  As crianças fazem listas e cartas ao velhinho, pedindo os presentes, e os pais se servem disso para fazê-los se comportar bem.

Mas esse bom comportamento é quase impossível, já que não há ceia de Natal que possa fluir em conversação agradável e afetuosa com os pequenos indóceis e rondando a árvore, gemendo e gritando de ansiedade por seus presentes, olhando ávidos os misteriosos embrulhos que ali faíscam como pepitas de ouro.  Há que proceder a distribuição, dizendo que foram trazidos por Papai Noel, para ver se eles se acalmam, embora ao fim da noite já estejam entediados do que lhes coube e comecem a brigar pelo presente do irmão ou do primo.

Ninguém ou muito poucos se recordam daquele que é ou devia ser o centro da festa: a criança divina que se fez carne e nos trouxe a salvação.  Ninguém olha para ela, tão quietinha e humilde na manjedoura ao lado de seus pais, Maria e José, jovens e honrados israelitas, obrigados a obedecer as absurdas leis do ocupante romano.  Lembro-me quando no colégio, ainda pequena, íamos à missa do Galo.  E uma de nós era sorteada para carregar o Menino Jesus e depositá-lo no presépio.  Nunca em toda a minha vida, em alguns momentos de vitória profissional, de alegria celebrativa ou de reconhecimento acadêmico, lembro-me de haver-me sentido tão honrada, tão privilegiada como naquela ocasião em que carreguei com imenso cuidado a imagem rosada do Menino com os braços abertos até o altar.

Havia peças de teatro que encenávamos nós mesmos sobre o Evangelho do Nascimento de Jesus.  Já fui rei, já fui pastora, já fui Maria nessas ocasiões.  De todas as vezes sentia fundo a narrativa que ao longo de mais de vinte séculos vem inspirando e resgatando o gênero humano da banalidade assassina do biológico des-animado (sem alma) e do consumismo desenfreado.

Tudo isso parece que vai se esvaindo, esfumando na noite dos tempos.  Não totalmente, graças a Deus.  Por isso é urgente resgatar essa memória que não se pode perder.  As futuras gerações necessitam de esperança e Papai Noel não pode dar-lhes isso.  Necessitam crer em Deus e não numa figura lendária, que é como um anão da Branca de Neve mais alto.  E de São Nicolau ficar com a parte importante: a caridade que ele fazia com os pobres, deixando para as mesmas peças de ouro na chaminé.

O Deus de Israel em quem cremos como o Pai amoroso de Jesus de Nazaré não se identifica nem com fenômenos da natureza, ou com ciclos de fertilidade ou menos ainda com figuras de lendas.  As lendas são o que são: podem interessar o senso estético, mas não podem provocar e convocar a fé.  No Natal, o gesto mais inaudito de Deus desencadeia no mundo o fato cristão: a Encarnação, Deus que se faz carne, um de nós igual em tudo menos no pecado.  O Infinito no finito, o Absoluto no relativo, o Rico na pobreza e no despojamento.

Se esse mistério for banido de nossas vidas, se o Menino envolto em faixas e deitado numa manjedoura for definitivamente substituído pelo velhinho de vermelho em seu trenó de renas voadoras, não teremos nos tornado menos religiosos ou menos crentes.  Mas sim, infelizmente, menos humanos.

 Que Deus não permita que isso nos aconteça.  E que venha o Natal, com muito menino Jesus e pouco Papai Noel, como diz meu querido amigo Frei Betto.  Que o mistério de Belém não perca o poder de encantar-nos e, sobretudo, a capacidade de voltar nosso olhar para os pobres e necessitados.  FELIZ NATAL! 22.12.17

 Obs: A teóloga é autora de  Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.

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