Djanira Silva 1 de novembro de 2019

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Ainda criança mandaram-me para o internato num colégio de freiras. Para lá levei minha inocência. Minha alma em branco durou pouco. Logo me ensinaram sete pecados – os capitais. Daí, por conta própria, descobri os mortais, os veniais, por pensamentos palavras, obras e até por omissões. Passei a ter tal intimidade com eles que pareciam fazer parte de mim desde o primeiro suspiro.
Não nego, eles me fascinavam. Pequei por gosto e prazer. Do contrário como dar serviço ao perdão? Para isto serviam os confessionários onde despejávamos baldes de pecados – às vezes não cometidos – e recebíamos de volta uma penitência mixuruca que não dava para perdoar nem a metade.
Jamais me ensinaram virtudes. A gente nasce com elas, me diziam. Quais seriam? Como ser bom? Alguém, por acaso, tinha a receita? Não recebi nenhuma. Sempre muitas perguntas, respostas duvidosas.
O que me ficou das práticas religiosas foi a revolta da criança, internada num colégio, frio e bolorento ao ser acordada às cinco da manhã por uma sineta gasguita, para assistir missa, morrendo de sono, com fome e com frio. Tontura e desmaios nas horas geladas das manhãs borrifadas com o cheiro do incenso e com palavras estranhas repetidas, diariamente, por um sacerdote robótico que parecia entediado.
O que me ficou das práticas religiosas impostas por freiras e padres? O internato nada mais era do que uma prisão consentida, uma privação do convívio com a família. Ali cumpríamos uma pena sem sabermos por quê. Tudo era visto com lentes de aumento. Proibições por todos os lados. Terreno fértil onde a imaginação plantava verde para colher maduro. Ali, até a amizade entre colegas era proibida. Só mais tarde, muito mais tarde mesmo, foi que vim a compreender o que se passava dentro e fora da cabeça das madres que, com tantas restrições, apenas conseguiam implantar a dúvida e a curiosidade nas nossas. Quase me estragaram a juventude não fosse eu mais experta e mais ligeira procurando viver minha vida sem medo da ressurreição e do juízo final.
De tudo isto ficaram-me as as experiências vividas fora do cárcere de uma religião que condenava antes de julgar e quando julgava, concedia um perdão inflamado pelas chamas do inferno.
Alegria? Era pecado. Escrever qualquer coisa que não fosse estudo ou religião? Era pecado. Amar ao próximo? Bom, este segui à risca não me faltaram próximos.
Carrego as doces lembranças das festas profanas, das barracas de doces, da banda tocando no caramanchão da praça.

Guardo, como estigma, os ressaibos de uma crença forjada a ferro e fogo e empurrada goela abaixo por pessoas que escondiam sob as falsas virtudes fantasias inconfessáveis.
Valha-me Sant’Águeda, valham-me todos os santos. Já não bastava a tristeza de se viver num mundo onde ninguém se entendia?
Hoje, ainda, revoltam-me os pruridos de santidade. Revoltam-me as máscaras usadas depois que a juventude passa deixando melancolicamente, os restos mortais dos que nunca estiveram vivos.

Obs: A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Saudade presa (2014)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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