A Metafísica, como sistema puramente abstrato e separado da realidade concreta, plasmou uma civilização baseada em conceitos homogêneos e imutáveis. Criou-se um padrão cultural com a pretensão de estender-se ao mundo inteiro. Basta pensarmos aos grandes impérios: uma vez que conquistam os outros povos, a cultura e a religião do rei devem assumir o primeiro lugar na vida dos colonizados. Além disso, aquilo que é contingente e local, caso não se adapte aos conceitos elevados da cultura do dominador, corre o risco de sofrer terríveis formas de violência. O mundo do conquistador não perdoa as diferenças culturais.

Além do risco da violência que as formas elevadas da metafísica podem causar, tem-se ainda um outro: trata-se da relação entre linguagem e verdade. No mundo clássico, a lógica aristotélica desmascarava os “erros” da linguagem. Na Idade Média, o conceito de verdade era obtido a partir da ideia de adequação. A realidade para ser verdadeira precisa passar pelo crivo das leis abstratas da razão. Isso criou um modo único para dizer e explicar as coisas. E assim aquelas civilizações conquistadas, à medida que “cresciam”, esqueciam a própria cultura e os seus valores locais, visto que eram obrigadas a aprender o modo de raciocinar dos conquistadores. É digno de atenção só aquilo que vem de fora e muitos daqueles que resistem à petulância das formas totalitárias da razão terminam com a autoestima baixa, pois sofrem preconceitos e perseguições. Aqui entram as formas cruéis dos “ismos” que rotulam pessoas e regiões geográficas. Tal modo de agir, dá continuidade a um ciclo vicioso do igual, do homogêneo, de um padrão único de verdade que sufoca as formas locais de interpretação do mundo.

Contudo, a própria história do pensamento ocidental, ao reconhecer que a insistência nas filosofias totalitárias causa a decadência da humanidade – veja-se, por exemplo, as duas grandes guerras mundiais – buscou desenvolver uma nova razão capaz de reconhecer a sabedoria das minorias, das diferenças, daquilo que era sempre visto como insignificante, em outras palavras, a sabedoria local e contingente conquista cidadania e dá voz e vez aos sujeitos marginalizados. Vejamos dois importantes pensadores que colaboram a tornar realidade o que estamos dizendo: um foi o filósofo austríaco, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e o outro é o argentino Jorge Mario Bergoglio, atual Papa Francisco. Cada um desenvolve uma reflexão autônoma que nos faz trilhar a estrada que vai das formas autoritárias rumo ao mundo das diferenças locais, as quais ajudam a construir um novo ethos mundial, aquele marcado pela igualdade entre os povos e pela autonomia das inúmeras formas de razões locais que interpretam o mundo através dos próprios elementos culturais.

Comecemos pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Fazendo da linguagem objeto da sua filosofia, realizou uma virada epistemológica no modo de compreensão da realidade. Em sua primeira obra, o Tractatus Logico-philosophicus ele é ainda adepto da ideia de que o mundo é a totalidade dos fatos, os quais são representados apenas pela proposição lógica. Por isso, ficou famosa a sua máxima: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Wittgenstein consagra a proposição lógica como única expressão legítima para representar os fatos. Tem-se, com isso, um pragmatismo que reduz tudo ao mundo dos fatos e da lógica. Contudo, existe um outro momento importante que inaugura uma reviravolta linguística na história da filosofia. Na obra Investigações Filosóficas, o pensador austríaco concebe a linguagem em perspectiva de jogo. Ele descobre que uma única palavra pode assumir vários significados, dependendo do contexto que vem utilizada. Para ele, a linguagem é formada por inúmeros jogos de palavras que possuem igualmente inúmeras regras de compreensão e não uma única regra. Se aprendermos as regras linguísticas próprias dos vários contextos culturais que dão significado as palavras, então somos capazes de habitar novos mundos. Wittgenstein põe em crise a ideia de gramática única. Se na primeira fase da sua filosofia ele pensava que existia apenas um modo exclusivo de dizer o mundo, nas suas Investigações filosóficas os contextos representam os vários mundos, com diversas formas de linguagens usadas para representá-los. A linguagem aqui é plural, complexa e rica de significados.

Algo muito parecido está acontecendo no ambiente eclesial, graças a virada teológica inaugurada por Papa Francisco. Podemos elencar três pontos que o colocam em sintonia com a mesma percepção de Wittgenstein. O primeiro diz respeito a mudança de linguagem: Francisco evita as metanarrativas e assume o estilo curto e metafórico. Seu modo de comunicar-se é concreto, sem divagações abstratas. Insiste em retomar as formas culturais de um povo: primeiro devemos conhecer as raízes, para só assim caminharmos com segurança no presente. Acreditando sempre na força transformadora do diálogo, enfrenta os problemas hodiernos, sem recorrer as respostas antigas, ou seja, sem a comodidade do discurso já elaborado. Tudo começa das bases, da observação e da escuta para só assim construir pontes capazes de ligar as culturas. Tudo isso não soa diferente da velha metafisica que parte de conceitos gerais para adequar as realidade contingente dentro de um único padrão de compreensão?

Um segundo elemento da virada teológica de Francisco é a predominância do contexto. Na sua primeira Exortação Apostólica, propõe uma máxima revolucionária: “A realidade é superior à ideia” (EG n. 231). O próprio papa conduz a barca de Pedro respeitando as particularidades dos contextos. Antes de escrever qualquer documento oficial, tem o grande cuidado de consultar e ler os textos das conferências episcopais e inseri-los nas notas de página. Por isso, interpela a teologia a estar em rede, a ser sinodal. Francisco é consciente que a velha teologia dos manuais já caducou diante da complexidade dos novos problemas que surgem. Em seu célebre discurso em Nápoles, afirmou com entusiasmo a urgência de elaborar-se, por exemplo, uma teologia capaz de responder aos dolorosos desafios do mediterrâneo. Neste sentido, o falar de uma teologia contextual nos remete a “uma Igreja que se coloca cada vez mais no centro a evangelização. Não à apologética, não aos manuais”. Para ele, isso significa um pentecostes teológico.

Se a velha metafísica que ainda insiste em sobreviver em algumas salas de teologia e na ponta da caneta dos assim conservadores que vivem a saudade de um passado que não volta mais e reivindicam uma Igreja imóvel, detentora de privilégios e fantasias medievais, a reviravolta teológica de Francisco, ao contrário, insiste em uma Igreja em saída, ou seja, em movimento. Viver a experiência da cultura do encontro e derramar o olho da misericórdia sobre as feridas daqueles que são a carne sofredora de Jesus no mundo de hoje é a forma sublime que faz realmente a Igreja ser católica.

A linguagem metafórica, o contexto e a misericórdia visibilizada nas obras de caridade são as grandes colunas de sustentação da reviravolta teológica que estamos vivendo. Por isso, é justo fazer um paralelo entre Francisco e Wittgenstein, dois grandes pensadores e reformadores da nossa cultura.

Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. É mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) – Roma.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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