João Baptista Herkenhoff 1 de setembro de 2019

[email protected]
www.palestrantededireito.com.br

Pela primeira vez no curso de minha existência, vivi por uma noite a situação de flagelado. Foi uma experiência que me impõe um salto existencial.

Eu voltava de Vitória, onde acompanhei minha mulher para uma consulta médica, e me dirigia a nossa residência na Praia da Costa. No meio do caminho caiu o temporal que deixou milhares de famílias capixabas ao desabrigo.

Quando estávamos diante da alça, cuja transposição nos levaria bem próximo do edifício onde moramos, o táxi que nos conduzia percebeu que não seria possível seguir adiante. O carro ficaria afogado na água, se tentasse vencer a correnteza. Também já estava totalmente interrompida a passagem pela Rua Hugo Musso, a segunda alternativa possível. O taxista subiu até o topo do Morro do Marinho, onde estaríamos a salvo das águas. Disse que deixaria o carro estacionado ali e seguiria a pé para sua casa, no meio da lama. Deixou-nos a ver navios, como se diz na linguagem popular. Eu me vi na situação de flagelado: ao relento, sem ter onde reclinar a cabeça. Pensei nos milhares, em situação infinitamente pior: não num desabrigo eventual, que podia ser contornado com um pouco de paciência, mas num desabrigo total. Meu filho, residente na Praia do Canto, disse que iria a nosso encalço. Nós lhe pedimos que não se lançasse a tão temerária jornada, uma vez que não poderia transpor a correnteza.

Quando estávamos aparentemente entregues a nossa própria sorte, eis que se aproxima um casal que não conhecíamos e também não nos conhecia: Miguel Motta Neto e Valquíria Motta. Esse casal nos convidou para que nos dirigíssemos à casa deles, que ficava ali bem perto. Fomos então recebidos por Dona Mara, Mãe do Miguel, e ficamos conhecendo o filhinho do casal – Gabriel, que tem a mesma idade de nossa netinha Lis. Dona Mara nos ofereceu um café com broas feitas em casa.

Estávamos a projetar como seria nossa ida em direção ao edifício onde moramos, na Avenida Antônio Gil Veloso. Seria preciso esperar que o nível das águas baixasse. Foi aí que Miguel e Valquíria atalharam nosso pensamento: não iríamos para nossa residência, dormiríamos na casa deles.

Felizes sob a proteção daquele lar, antevimos que o assoalho de madeira seria mais confortável que o leito que nos fosse oferecido num castelo.

E eis que Valquíria, Miguel e Dona Mara nos propõem um absurdo: eles todos se ajeitariam no chão e nós dormiríamos na confortável cama do quarto do casal. Tentamos sem êxito dizer não.

E a noite que supúnhamos seria de flagelado tornou-se uma celebração de Fraternidade. O salto existencial que mencionei no início deste artigo consiste no desafio de tentarmos ser para outros tão irmãos quanto foram para nós Miguel, Valquíria e Dona Mara.

Obs: O autor é magistrado aposentado (ES), escritor, professor, palestrante. 
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2197242784380520
É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]