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“A Igreja é uma conspiração de testemunhas”

(Carlos Barth, famoso teólogo alemão)

A Comunhão Anglicana, designação do conjunto de Igrejas locais (dioceses e províncias) em comunhão com a Sé de Cantuária, na Inglaterra, já há muitos anos tem elaborado uma síntese da Missão da Igreja no mundo. É oportuno lembrar que a Igreja Anglicana se reconhece como herdeira da “Ecclesia Anglicana” ou “Igreja da Inglaterra” (“Anglia”, em latim, é o nome antigo da Inglaterra), a Igreja cristã surgida nas Ilhas Britânicas (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda), provavelmente, entre os séculos I e II de nossa era. Quem sabe, iniciada pela iniciativa missionária de soldados e comerciantes que se moviam entre a região e a Europa Oriental, e consolidada pelo ardor missionário de grandes figuras monásticas, como Agostinho (Inglaterra), Patrício (Irlanda) e Columba ou Columbano (Escócia).

Durante a Reforma Protestante, enquanto se abria paulatinamente às grandes intuições do movimento reformador e se acentuavam os conflitos com o papado romano, a Igreja, porém, reafirmava sua identidade católica: sentimento de continuidade com a grande tradição antiga expressa na Bíblia e na Patrística; nos credos (o Niceno-Constantinopolitano como síntese da doutrina dos grandes concílios antigos e o dos Apóstolos como credo batismal); na preservação das ordens de Bispo, Presbítero e Diácono; na administração dos sacramentos, enfatizando, porém, o Batismo e a Eucaristia; na importância da celebração da Liturgia, com o propósito, porém, de manter o equilíbrio entre Palavra e Eucaristia, com a consciência de que a pregação dos princípios bíblicos deve levar à mesa comum e ao exercício solidário da missão no mundo. Mesmo ao aproximar-se da Reforma, a Igreja tinha consciência de permanecer “Católica” e a intenção de ser o grande espaço de “via media”, entre Catolicismo e Protestantismo, de tal forma que a vivência “católica” fosse algo tão amplo a ponto de incluir a nova sensibilidade protestante e sua reivindicação de volta às fontes apostólicas e ao modelo da Igreja Primitiva.

Um famoso Arcebispo de Cantuária, se não me engano, William Temple, grande baluarte do Ecumenismo e do Conselho Mundial de Igrejas, havia dito uma frase que causou grande impressão: “A Igreja é a única sociedade que se destina a cuidar de quem está fora dela”.

Nas “Marcas da Missão” se pretendeu dar corpo ao conteúdo dessa proclamação e articular, em síntese consistente, o que é realmente a função de evangelizar e qual é a linha mestra da espiritualidade cristã. A Igreja, no seguimento de Jesus, aparece aí como agente de transformação do mundo, alcançando as pessoas, suas relações de convivência, dentro e fora da comunidade eclesial, e as estruturas da sociedade que não são outra coisa senão mediações das relações humanas. Em outras palavras, a comunidade da Igreja não deve cumprir a função de “clube religioso”, mas para os fiéis é espaço de exercitar-se no serviço a toda a humanidade (sociedade). Já o Apóstolo São Paulo falava da vida cristã como treinamento de combatentes (cf. 2Cor 6, 7; 10, 4; Rm 13, 12; Ef 1, 21-23; 6, 10-20; Fl 1, 27-30; 1Ts 5, 8). O Conselho Consultivo Anglicano, uma espécie de parlamento mundial, composto por bispos(as), clero e laicato do Anglicanismo, foi encarregado de elaborar o documento que recebeu o aval de toda a Comunhão:

                                                         As Cinco Marcas da Missão

  1. ANUNCIAR as Boas-Novas para a conversão das pessoas: “kérygma”
  2. BATIZAR E NUTRIR mediante a COMUNIDADE: Koinonía (ou comunhão), Didaskalía (crescer no conhecimento da Palavra), Diakonía (exercício de serviço e partilha), Mystagogía (iniciação no mistério de Cristo), Leitourgía (gozosa celebração do “ser em Cristo”
  3. Criar serviços de amor em favor de pessoas e grupos necessitados: SOLIDARIEDADE
  4. Lutar para transformar as estruturas injustas da sociedade: JUSTIÇA
  5. Zelar, preservar e renovar a vida e os recursos da terra: CUIDADO

 Com essa síntese a Comunhão Anglicana tem consciência de ter prestado um serviço a toda a Igreja cristã. Nas “cinco Marcas” está presente aquilo que deve ser característico do Cristianismo. Há uma profunda lógica de conjunto, que tentamos reproduzir num esquema abaixo. Para começar, nota-se que só duas marcas dizem respeito à edificação da Igreja em si mesma, enquanto três são as marcas que abrem a comunidade cristã à sociedade. Um sinal de que a Igreja (“pequena casa”) não é para si, mas para o serviço ao mundo (“a grande casa comum”).

É bom ressaltar que aí aparece uma perspectiva de Espiritualidade e de Evangelização. O Anúncio do Evangelho não se faz apenas no princípio, na primeira marca. Todas as cinco marcas constituem passos da Evangelização. Não só a Palavra, mas sobretudo o testemunho é evangelizador (“diakonía de amor fraterno” e “diakonía de testemunho”). A Igreja como tal, ou seja, como comunidade, é por excelência agente de evangelização, por sua vida, por sua palavra e pela intrepidez de seu testemunho no mundo. O Anúncio se dá por palavras e ações, a saber, pela práxis da Igreja, ou seja, sua vida comunitária e sua coragem missionária.

O traço de conexão de tudo é a DIACONIA ou serviço, que, de acordo com os evangelhos, é o traço básico de Jesus, o “Servo de Deus” por excelência (cf. Mc 8-10; Is 42; 49; 50. 52-53) em vista de que se estabeleça o Xalôm, o Bem-Viver que possibilita a Felicidade e a Paz (cf. Ef 2). A mediação fundamental é a COMUNHÃO (“koinonía”) (cf. At 1, 12-14; 2, 42-47; 4, 32-37; 5, 12-16), que transborda da comunidade e corre na direção da sociedade, através da solidariedade com pobres, pessoas oprimidas, marginalizadas e excluídas. É o sentido dos relatos de prodígios nos evangelhos e no livro de Atos dos Apóstolos, sem falar de que Jesus mesmo se identifica com as pessoas e grupos mais pobres (cf. Mt 25). A conversão nos leva à experiência de comunidade que nos vai ajudando a tornar-nos “nova criatura” (cf. Rm 6); o serviço recíproco e a partilha de bens nos vão transformando e, de repente, a experiência vivida força as comportas e exige de nós “solidariedade mediante serviços de amor”, é nosso primeiro passo na direção da sociedade. Como dizia Dom Helder Camara, como não apanhar caídos da guerra da miséria que estão aí a nosso lado? À medida que despertamos para a solidariedade com pobres e pessoas e grupos humilhados, começamos a nos perguntar, e é ainda Dom Helder quem fala, nos perguntar pelas razões da guerra: é um fato que a miséria mata bem mais que os conflitos armados. Vamos aprendendo que apenas solidariedade e ajuda com “projetos sociais” não bastam, é preciso dar mais um passo, “lutar contra as estruturas injustas da sociedade”, incidir sobre as estruturas de opressão que estão montadas em âmbito mundial.

Finalmente, nossa consciência cristã cresce, amadurece e assim nos apercebemos de que a própria vida no planeta está em perigo, a criação de nosso Deus “sofre dores de parto” (Rm 8, 22-23; cf. Os 4, 1-19) e aguarda nossa decisão. Se antes dependíamos da Natureza, agora é a Natureza que depende de nós e “aguarda ansiosamente” que passemos da irresponsabilidade à responsabilidade planetária. O problema ecológico é tremendo desafio a nossa fé na Criação e na Ressurreição.

À medida que progredimos na atuação desse “programa de evangelização”, percebemos que estamos a fazer um processo simultâneo  de amadurecimento espiritual, As “Marcas” nos chamam a vivenciar uma peregrinação espiritual. Na medida em que nos evangelizamos, nos tornamos pessoas melhores e mais semelhantes a Deus; é nessa mesma medida que vamos percorrendo um caminho no qual vamos indo sob o impulso do Vento santo do Espírito de Cristo, como nos diz São João em seu evangelho (cf. Jo 3, 8; 4, 24; 14-17). Por isso, digo que as cinco Marcas são uma “pauta” de Espiritualidade.

A iniciação ou “mystagogía” (iniciação ao mistério de Cristo), que se deve dar na comunidade, nos leva ao processo vital de assimilação do mistério de Cristo. A pessoa se sente provocada a viver intensamente as relações comunitárias, de comunhão (“koinonía”) e, por isso, a incorporar o serviço de Cristo, à imitação de Jesus Servo de Deus (“diakonía”). Dois instrumentos básicos para crescer e aprofundar sempre mais essa condição de “nova criatura” é a leitura e o estudo das Escrituras (“didaskalía” ou ensinamento: a Bíblia é nossa escola de liberdade) e a vivência profunda de que celebramos na Liturgia (“leitourgía”) nossa vida como “sacramento”, ou seja, “sinal e instrumento” visíveis da Graça invisível que é a presença de Deus em nós, dá-se em nós algo da Encarnação que se dá em Jesus, nosso irmão em humanidade.

A evangelização ou anúncio da Boa Nova não se pode limitar à proclamação oral do Evangelho (o chamado “evangelismo”), antes, todo o ser da Igreja deve anunciar Jesus, mediante o testemunho da Palavra, o testemunho da vida comunitária (“diakonía de agapé” ou amor fraterno) e o testemunho da ação na sociedade (“diakonía de martyria” ou testemunho) em vista de fazer transbordar o amor de Deus entre as pessoas e na comunidade para a sociedade, pela solidariedade (social), pela luta em favor da justiça (luta política) e pelo cuidado com a criação (Ecologia). É assim que a Evangelização e a Espiritualidade se manifestam como eficazes instrumentos em vista de que se estabeleça  na terra o Xalôm, o Bem-Viver, desde a Ecologia (a lógica da Casa) que exige cuidado, passando pela Economia (a lei da Casa), que exige justiça) e pelas relações e estruturas sociais e políticas, que exigem igualdade e “democracia”, até a expansão mais plena do espírito que se manifesta através dos valores culturais e religiososque legitimam a convivência social.

Finalmente, devemos ter bem presente que há relação essencial e radical entre conversão pessoal, vivência comunitária e serviço à transformação da sociedade, desde a ajuda fraterna imediata, até a lúcida e corajosa participação  na luta política que vai do cuidado com a criação (Ecologia) até a luta pela transformação das estruturas de opressão. Tudo isso é missão divina, como dizia a grande escritora Clarice Lispector: “Acontece que tudo o que vive e que chamamos de “natural” é em última instância “sobrenatural”, e ainda: O Deus é hoje: Seu reino já começou. Só temos de Deus o que cabe em nós”…

AS CINCO MARCAS DA MISSÃO: CAMINHO DE ESPIRITUALIDADE E DE EVANGELIZAÇÃO – Caminho de Espiritualidade da “koinonía” (comunhão) que é a “diakonía de agapé” (amor fraterno) e da “diakonía de martyría” (testemunho frente ao mundo)

 A lógica interna: a Igreja (“ecclesia” ou assembleia) como assembleia alternativa ao sistema do mundo:

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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