Do lado direito, o mar, azul escuro, as ondas vindo e se desmanchando, num espetáculo que me deixa impregnado de tanta e repetida beleza. Do lado esquerdo, a quase um quilometro da praia, ou mais, casas enfileiradas, distantes uma da outra,e, a sua frente, pedras despejadas que me trazem à memória o fato de, há quase vinte ou mais anos atrás, ter por ali passado, quando o mar, sim, quando o mar avançava e ameaçava destruir tudo a sua frente. Vem, então, à baila, o obstáculo de areia e nela o marco do mar ali ter batido, numa investida que, um pouco a mais, engolia as cercas e respectivas casas. O mar recuou e muito. O caminho de hoje fica onde ontem se estendia o mar. Falta esclarecer que me dirijo ao nascente.

Me encho, então, de dúvidas. O desejo imenso de conhecer o segredo do avanço e do recuo das ondas, o motivo porque o mar é tão mutante e inconstante, tão rebelde a paisagem única, a se transformar a cada passo, ora na ameaça de tudo tocar com as suas ondas, e, depois, inesperadamente, como se estivesse de barriga cheia, recuar e se afastar, a tirar o corpo da culpa, e dizer que nada tinha a ver com a paisagem que, ontem, furioso, abateu, venceu, mostrando, em seus ataques, que o mar é o mar, não dando intimidades a ninguém de lhe antecipar o local onde vai, amanhã, palmilhar, se fechando no segredo de suas artimanhas, criança travessa que faz as suas, e, depois, recua, no vai e vem de suas ondas, como se nada tivesse ocorrido, totalmente surdo aos nossos apelos e indignação.

À tona me vem o poema [magistral, aliás] de Santo Souza, que eu tento recitar, não passando do refrão: Ó cidades, ó noite, ó assassinos! Em vão a declamação que faço entoar, porque não há cidades, nem noite, nem muito menos assassinos. Só o mar, eterno, poderoso, belo e inconstante, cujos passos, no avançar e no recuar, ninguém domina, foge ao abraço de qualquer decisão, escapa de qualquer edito presidencial, está além de toda norma editada pelo parlamento, mar que faz o que quer e a sua vontade dita, sem dar satisfações, sem perder a elegância, sem se despojar da incerteza que assinala seus passos, fechado num segredo que ciência alguma desvenda, desafiando o homem que constrói casas a sua proximidade, só respeitando a pedra, o aglomerado de pedras que se alevanta a sua frente, e assim mesmo, sem lhe dar trégua, batendo e recuando, recuando e batendo, na certeza de que, mais dia, menos dia, quando menos se esperar, erguerá seu grito de triunfo, ó cidade, ó noite, ó assassinos!.

Os que dominam a oceanografia oxalá tenham em mãos os segredos do mar. Na minha parca formação cultural, nenhum livro do ramo se colocou a frente. Talvez porque a infância é o homem, e na minha, só uma vez, quando menino, com menos de cinco anos, por aí, eu vi o mar e chorei de medo, mesmo ante a beleza que toda aquela paisagem, que meus olhos guardaram, me ensejou, me recusando a pisar em suas águas, resistindo ao apelo de, nele, entrar, não chegando nem a molhar os pés. No mais, a minha rua não tinha mar, não fazendo os açudes o seu papel, e, quando me entendi por gente, não consegui entendê-lo, como, ainda hoje, me espanto com a inconstância de suas atitudes.

Quem, afinal, entende de mar, que levante a mão, ó cidades, ó noite, ó assassinos! 12 de janeiro de 2019.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe 
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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