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O contacto e o confronto com a Vida nos fazem suspeitar de que essa não se deixa alcançar, apanhar ou controlar facilmente, algo decisivo sempre nos escapa. Chegamos a intuir que o Mundo e a Vida brotam de uma fonte secreta que nos é oculta. Somos como águas de rio que correm adiante sem jamais poder voltar e contemplar a fonte donde brotam. Queiramos ou não, digamos ou não, a fonte está sempre para além do que podemos alcançar. É irrecusável reconhecer que, por mais que façamos ou busquemos, o horizonte sempre recua e nos escapa. Mesmo no final de toda a carreira, o adequado nunca é o ponto final, mas o de interrogação. Tudo termina sempre em pergunta. Sim, a vida é mistério escura nuvem que nos rodeia e envolve, como sugere a simbologia da Bíblia (cf. Ex 19, 16-25). É dessa experiência fontal, como de eixo comum, que brotam a Fé e a Religião, a Ética e a prática moral, Moral, a Espiritualidade e a prática política.
Pela Religião tentamos alcançar e dar forma ao Mistério, desesperadamente buscamos “re-ligar-nos” à Fonte ou “re-lê-la”, reinterpreta-la, decifrá-la. Especialistas ainda discutem se a origem do termo é o verbo latino “religare” ou “relegere”. Na verdade, tentamos a aventura impossível de dar ao Mistério inefável face visível e palpável; esforçamo-nos por dizer o indizível. E assim é que criamos deuses(as) e lhes damos aos deuses(as) os traços de nossa própria face e neles(as) buscamos salvação, na tentativa desesperada de salvar-nos a nós mesmos(as). Essa experiência é originalmente de cada pessoa, mas, ao mesmo tempo, ela se comunica e se vai tornando coletiva, social, formaliza-se, estrutura-se, toma forma de instituições, de ritos, mitos, sacrifícios e costumes, e se transmite por herança. Assim, a religião vai-se tornando instância legitimadora de princípios, valores e normas culturais, ou seja, a instância mais elevada da construção da Cultura de um povo; torna-se facilmente “ideologia” inapelável, pois a referência à divindade, de aprovação ou de reprovação, é a instância última legitimadora do sistema de vida.
Algo semelhante se dá com a Moral. Deparamo-nos na sociedade com valores, normas e costumes que nos possibilitam ser aceitos(as) no convívio social e, em decorrência, nos sintamos pessoas boas, corretas, ou incorretas e até más. Moral e Religião são dois campos intimamente ligados e afins, e frequentemente são os(as) deuses e deusas que aprovam ou desaprovam, qual instância última, nossos costumes tanto religiosos quanto morais. Costumes morais são frequentemente tidos como prática efetiva de nossa religiosidade. Na Religião, buscamos desesperadamente alcançar Deus o mais diretamente possível, enquanto na Moral o fazemos mediante a relação com o próximo. Por isso, prática religiosa e prática moral estão frequentemente conectadas e, à primeira vista, parecem inquestionáveis, pois sua norma absoluta e perene tem aparência de inquestionável, uma vez que seu fundamento é sentido como perene e transcendente, proveniente da divindade. A Bíblia, sobretudo no Profetismo, denuncia reiteradamente, tanto a Religião quanto as práticas morais vigentes como idolatria, “feitura de mãos humanas”, busca de legitimação e até de prestígio social. Vale a pena ler com atenção os capítulos 13 a 15 do Livro da Sabedoria, análise preciosa do tema, e na mesma linha achamos vários salmos (cf. Sl 115; 135; 146).
Para além da Religião e da Moral situa-se a Fé, como experiência de atenta escuta da “voz” da Vida como chamado, vocação, palavra que não é explicação da Vida, antes, é convocação (“vocaciona”) a assumir o desafio, entregue a cada geração humana, de viver como tarefa de construção permanente da própria pessoa e de seus valores, das relações comunitárias e das relações societárias. De fato, a Palavra ou chamado a viver, depende, na verdade, de muitos fatores concretos, mas sua orientação fundamental é tornar-nos cada vez mais plenamente humanos(as). Mas, na realidade, o chamado a viver pode ser percebido em sentidos opostos: “viver para si” ou “viver para além de si”, a saber, em relação de abertura à vida: às outras pessoas, ao conjunto da Natureza e da Sociedade e em relação ao Futuro. O caminho positivo, generoso de doação de si se funda necessariamente na Fé, na Esperança e no Amor. Infelizmente o chamado pode ser percebido como para “viver para si”. Essa bifurcação é o que a Bíblia designa como escutar e seguir o Deus vivo ou escutar e seguir os ídolos. Na verdade, os ídolos são a projeção imaginária de nós mesmos(as). Assim, Fé não equivale a crenças, mas a sentir-se chamado(a) a “caminhar como se visse o invisível” (cf. Hb 11, 27), como se participasse do próprio mistério da Criação e recriação do mundo. É passar de sentir-se simplesmente “frente a Deus” a sentir-se “em Deus”, participar do sentimento divino de infinita admiração ao contemplar as obras da própria criação: “E Deus olhou e exclamou: Que bonito! É muito bonito!” (cf. Gn 1). Se o mundo se acha ferido e degradado, Fé é comprometer-se a operar em vista de restaurar sua beleza “original” (cf. Rm 8). É por isso que as Escrituras insistem em definir Fé como compromisso de participar de “nova criação”, unir-se intimamente ao Mistério para operar segundo seu dinamismo recriador, transformador (cf. Rm 5,1-6,6). De acordo com a grande escritora Clarice Lispector, “acontece que tudo o que vive e que chamamos de ‘natural’ é em última instância ‘sobrenatural”, e mais: “O Deus é hoje: Seu reino já começou. Só temos de Deus o que cabe em nós”. É assim que se dá a experiência íntima de que a esse caminho podemos entregar-nos, pois nos achamos a pisar em terreno firme como de rocha (“emunah”: fé, na língua da Bíblia hebraica, daí deriva o termo “amén” que quer dizer “é firme”, inabalável), “Firmeza” é o sentido básico, sentir-se em terreno firme, é a dimensão básica da fé. Se o terreno é firme, então merece toda “confiança”. Finalmente, se é assim firma-se o compromisso de perseverar e prosseguir em ”fidelidade”. São justamente as três dimensões clássicas que compõem o compromisso da Fé: Fides (firmeza), Fidúcia (confiança), Fidelitas (fidelidade): em latim são palavras da mesma raiz.
Essas três dimensões da Fé nos tornam semelhantes ao mistério Criador e nos comprometem com Sua obra. Não se trata simplesmente de “acreditar”, ter novas e corretas crenças” religiosas. Trata-se’, antes de tudo, de comprometer-nos com a obra de Deus, como filhos e filhas, amorosamente, como contemplamos em Jesus quando nos tornamos semelhantes a Ele, “feitos(as) filhos(as) no Filho” (cf. Jo 1 e 5). Quem sabe, é preciso insistir: Fé não é simplesmente crença, mas a experiência transformadora de sentir-se firme, confiante e fiel no Amor. E o amor é sempre criador, operoso, produtor de obras de amor, o que se dá mediante relações e ações de amor, a saber, restauradoras da vida. Ao iniciar Seu ministério profético Jesus proclama: “É chegado (“completou-se”) o tempo e o Reinado de Deus está próximo (“às portas”), mudai de vida profundamente (desde sentimentos, pensamentos e ações) e ponde nesta Boa-Nova o firme alicerce de vossa vida!” Se continuamos a usar a expressão “crer no Evangelho”, devemos saber no entanto que não se trata de nova “crença”, mas de estabelecer a própria vida em novo e firme fundamento (cf. Mc 1, 14-15).
Para além da Moral que é sempre condicionada por valores e normas vigentes em cada sociedade; para além da religião que é sempre a busca de nos sentirmos aprovados(as) e protegidos(as) pelos deuses(as), a fé nos transporta como o Vento (cf. Jo 3, 6-8) e opera em nós a semelhança divina (cf. Jo 7, 37-39 e 8, 12. 31-36. 52). É o que chamamos de Espiritualidade, o que nos impele a assumir a Ética, o que se dá mediante relações e ações de amor, restauradoras da vida. Espiritualidade é sentir-nos movidos e transportados(as) por um “espírito” que nos carrega e impele a caminhar na vida. Sem dúvida, há uma “espiritualidade dos ídolos” que nos faz caminhar enredados(as) em nós mesmos(as), fechados(as) em nosso individualismo narcisista, o que em termos psicológicos corresponde a imaturidade e infantilidade. Aqui queremos referir-nos à Espiritualidade como caminho impulsionado pelo Espírito do Deus vivo, o que se dá mediante decisões, sentimentos, relações e ações de amor, restauradoras da vida. Se na religião somos tentados(as) a negociar a proteção dos deuses(as) e, por isso, investimos em mostrar que “gostamos de Deus” (baste lembrar a chamada Teologia da Prosperidade), a Espiritualidade que brota da fé se manifesta como compromisso de nos tornarmos “semelhantes a Deus”. Nesse caminho (cf. Jo 14, 4-10 e até o capítulo 17), a oração, por exemplo, se torna sempre mais contemplativa, de adoração, de ação de graças e de vigilância, muito mais parecida com a oração de Jesus que em Suas noites de vigília se preparava para as batalhas da “planície no dia seguinte” (cf. Mc 1, 35-45). Foi bonito escutar de uma homem de Tacaimbó, interior de Pernambuco, a seguinte declaração: “Ter chegado perto da experiência de estudantes da “Teologia da Enxada”, há cinquenta anos atrás, foi para mim aprender o que é oração, é o momento de recolher-se para renovar o compromisso com Deus de transformar este mundo”. Ou, como orava aquela criancinha, ao despertar a cada manhã: “Deus, como eu posso te ajudar hoje?”
Se a Religião pode até nos afastar de Deus, como se vê nas denúncias proféticas e de Jesus (cf. Am 5, 21-27; Is 1; Jr 7; Mc 11-13), pode ela ter alguma utilidade para a Fé? Como dizia Santo Tomás de Aquino, “de como Deus é nada sabemos”. Dele só podemos falar a partir de nós, não por linguagem descritiva, mas só alusiva, por imagens e símbolos, ou seja, em linguagem poética. Por isso, o querido e saudoso pastor presbiteriano, pernambucano, mas por muitos anos estabelecido no Rio de Janeiro, Carlos Cunha, dizia que a Bíblia não é “um livro de religião”, a saber, fala da vida humana em sua totalidade, mas é “um livro religioso”, sua linguagem é poética e por isso fornecida pela Religião que é terreno privilegiado da poesia em nossas relações com Deus ou os deuses(as). A Religião, de fato, pode ser muito útil para fornecer o vocabulário para falar da dimensão transcendente e fonte misteriosa da vida, pode ser muito útil como linguagem poética para falar de Deus. Imaginemos uma celebração litúrgica bonita e envolvente e os escritos da corrente mística….
Quem conhece os evangelhos percebe claramente que essa é a maneira de agir de Jesus, com seu jeito de falar por parábolas: “O Reino de Deus é semelhante a…” (cf. Mc 4; Mt 13; Lc 14-16) e, ao mesmo tempo, relativizar e até denunciar as práticas religiosas vigentes na sociedade de Seu tempo, controladas pelos chefes das sinagogas (casas de oração e estudo das Escrituras) e pelos sacerdotes do Templo de Jerusalém. (cf, Mt 23). À margem das prescrições religiosas, morais e jurídicas, vai ao encontro das pessoas marginalizadas e excluídas para curá-las (delas cuidar), libertá-las e incluí-las, restaurando assim sua dignidade (cf. Mc 2, 1- 3,19) O que o movia não eram as prescrições, exigências e o peso das leis, mas o amor, a restauração da dignidade das pessoas, sua inclusão na vida de comunidade e a percepção dos valores do Reino de Deus que se alarga sem fronteiras a “eleitos(as)” e “impuros(as)”, a conacionais e estrangeiros, a escravos e livres, a homens e mulheres. Na ótica de Jesus, sentir-nos transformados pelo Espírito nos leva imediatamente a comprometer-nos com, a obra de transformação das pessoas e de nossas relações. Ora, as relações não são só interpessoais, mas se dão no quadro das estruturas da sociedade: relações ecológicas que devem respeitar a lógica da Casa comum (cuidado com as pessoas e o universo); relações econômicas criadas para o sustento e o bem-estar das pessoas (Economia quer dizer as “leis da Casa”); relações sociais que devem favorecer a pessoas e grupos a acharem seu devido lugar no conjunto da sociedade; relações políticas ou de poder entre todos os membros da sociedade; relações culturais em torno de valores que orientam o comportamento das pessoas e da coletividade como um todo e legitimam ou não a ação dos membros da sociedade; a Cultura recebe sua suprema legitimação da Religião. A essa dimensão estrutural das relações na sociedade é que frequentemente nos referimos com o termo “política”, como, por exemplo, “política econômica”, “políticas sociais”, “política cultural”… e quando falamos de “fé e política”.(fé que toma corpo na ação política).. A Espiritualidade se revela, toma corpo mediante a Ética e esta diz respeito à qualidade de nossas relações, nossas relações interpessoais e estruturais. Na verdade, as relações constituem nossa realidade coletiva. Quando falamos de relações e estruturas políticas, referimo-nos à construção da “cidadania”, a saber, das estruturas que possibilitem relações nas quais o poder esteja a serviço da vida das pessoas e da coletividade, o que significa consequentemente a serviço do “Xalôm”, isto é, da felicidade, do “bem-viver” de todo o povo (cf. Ef 2).
É evidente que quando se diz Fé supõe-se que se perceba a relação com a Esperança e o Amor. Na verdade são três dimensões de uma única atitude global: sentir-se em terreno firme, por isso confiante e comprometido com ser fiel no caminho (Fé), só é possível se se tem Esperança, a saber, se é firme a certeza de que a face oculta da realidade, na verdade “a face do Senhor” (cf. Salmos), o que ainda é invisível, é real, antes, é mais real do que aquilo que se vê. Finalmente, se a Esperança nos leva ao compromisso da Fé, é claro que esta “opera pelo amor” (cf. Gl 5,6). O que a Esperança nos promete e a Fé garante é que a promessa é firme e nos leva necessariamente à prática do Amor. Só ama quem espera para além do que vê e por isso se sente chamado(a) a seguir fielmente pelo caminho, “como se visse o invisível” (cf. Hb 11, 27). O Amor enquanto entrega de si supõe a Fé e a Esperança. A Esperança enquanto certeza do futuro supõe o Amor e a Fé; a Fé enquanto firmeza, confiança, fidelidade supõe a Esperança e o Amor.
Ética, Moral e Política.
O termo “moral” deriva do latim “mores” (costumes). É a observância de costumes que consideramos positivos e aprovados socialmente e, ao mesmo tempo, renúncia a práticas tidas como reprováveis ou indesejáveis. Naturalmente cada grupo social tem suas “leis morais” e convenções quanto aos comportamentos que se esperam de seus membros. Ética é termo grego que, de acordo com alguns filósofos, alude à “morada do ser”. Em outras palavras, trata-se daquela dimensão que, digamos, compõe a “casa” da pessoa, humaniza-a ao atraí-la para o que realmente corresponde a sua identidade profunda. Por isso, equivale àquele horizonte mais alto, capaz de oferecer elementos críticos das práticas morais vigentes em determinada sociedade. É o caso de dizer que no horizonte da Ética estão as perguntas lançadas às convicções e práticas morais: realizam realmente a pessoalidade, o amor, a solidariedade, a justiça? Ou seja, são mediações que realmente encarnam os grandes valores da vida e das relações humanas? Mesmo que com frequência os dois termos sejam tomados como sinônimos, há forte tendência de estabelecer a diferença, deixando a Moral para designar o terreno concreto dos costumes de fato no âmbito das relações sociais e políticas estabelecidas, enquanto se reserva para a Ética o horizonte mais amplo e profundo, a saber, aquele da Antropologia Filosófica onde se situam os grandes valores que garantem o processo de humanização. A Ética interroga, questiona, critica e faz progredir os costumes morais estabelecidos. Se quiséssemos resumir tudo, quem sabe, concluiríamos assim: a Fé (a Esperança e o Amor) nos abre o Caminho do Espírito, o que chamamos de Espiritualidade; ao longo da caminhada vamos assimilando os critérios da Ética, ou seja, de nossa humanização; finalmente, a Ética nos provoca e nos orienta em nossas relações interpessoais e na prática da Política. A Bíblia é grande testemunha desse processo; através de suas histórias, suas profecias, suas novelas, suas leis, seus cânticos, poemas e orações nos indica a estrada a seguir e nos serve de “escola” para aprender e assimilar os critérios de Deus em relação com a vida.
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
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