(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Quando se celebra um novo ano de vida, é costume haver parabéns, bolos e velas. Mais se faz necessário quando a nova data inaugura uma década. Assim sinto-me eu agora, quando entro nos 70 anos. Nem em minhas mais longínquas e graves profecias exercitadas sobre mim mesma cheguei a pensar concretamente nisso. E, no entanto, chegou. Tenho 70 anos.
O que dizer diante disso? Primeiro que não me sinto com essa idade toda. Ou melhor, sinto-me e ao mesmo tempo não. Sim, porque olhando para os lados e para trás vejo quanto já foi vivido e quantas testemunhas existem que podem atestar de minha vida com eles e elas compartilhada em todos esses anos. Igualmente quantas testemunhas já se foram. e me olham e esperam do outro lado da vida.
Porém, não me sinto configurada pelo estereótipo de uma mulher – ou seja uma senhora – de 70 anos. Quando olhava para minha avó, em sua sétima década de vida, via uma senhora já bem avançada em anos, recolhida ao recinto do lar. Minha mãe, ao entrar nos 70, era mais ativa que minha avó, mas mesmo assim deixava ver pelo branco dos cabelos e pela postura corporal que o tempo avançava sobre seu corpo.
Não me sinto com 70 porque minha vida tem mudado pouco em relação a anos anteriores. E acontece hoje como quando tinha 50 ou 60. A não ser um cansaço mais fácil e uma paciência escassa, trabalho e me movimento tanto ou mais do que antes. Faço planos, curto a vida, tenho expectativas e acho uma delícia fazer programa com pessoas mais ou mesmo muito mais jovens. Dentre estes últimos, os preferidos são meus netos Carol, Maria Antônia, Cadu, Lucas e Vicky. Eles me mantêm acesa e maravilhada, brigam comigo devido a minhas ignorâncias tecnológicas, me contam casos e me fazem perguntas, tantas perguntas, às quais adoro me esforçar por responder.
Por tudo isso e porque permaneço nessa tensão escatológica entre já me sentir com 70, mas ainda não me experimentar velha, esse aniversário é sobretudo o tempo da gratidão. Há muito que agradecer, muito mais do que lamentar. É um rosário de agradecimentos que devem ser verbalizados hoje, do lado de cá da fronteira que ultrapassei.
E o primeiro é dirigido a Deus, fonte da vida, meu princípio e fundamento, o Senhor da história e das surpresas. Ele que deu uma reviravolta em minha vida quando me fez assumir uma profissão que ninguém entendia quando eu pronunciava: teologia. Perguntavam: biologia? E como você vai ganhar a vida com isso? Aqui estou, aos 70 anos, trabalhando exclusivamente nisso e vivendo. Aquele que me chamou e me enviou sabe por que o fez. Eu teria lhe sugerido melhores escolhas, mas parece que ele tem seus critérios independentes dos nossos. E cá estou, disponível como no primeiro dia.
O segundo é para a minha família. Órfã de pai aos 9 anos, filha única, tive uma infância e juventude um tanto “despovoadas” de pessoas, crianças, companheiros. Agradecidíssima sinto-me por ter podido formar a família que é a minha, com meu marido há 50 anos. Igualmente por meus três filhos, Lalá, Carlos e Candida, que habitaram meu corpo e dele saíram para serem pessoas, únicas, amadas e encantadoras. Cada um com seu perfil e sua particularidade, são três graças maiores dessa vida já longa. E obviamente meus netos, crianças que me devolveram um sabor vital que já andava esquecido pelos anos de maternidade e o ninho vazio dos filhos adultos. Poder ver e ouvir vocês, rir junto e viver esse amor sem ansiedade, repousado e pleno, é algo inestimável.
Em seguida, vêm meus alunos. Creio que elas e eles são os grandes responsáveis pelo fato de o envelhecimento ser por mim sentido de forma amena. Sua juventude, seus progressos, seus sucessos e êxitos acadêmicos me enchem de orgulho e me fazem vibrar intensamente. Como é bom vê-los descobrindo veios e explorando-os; lendo obras de autores difíceis e fazendo suas próprias interpretações, diferentes da minha! Como é bom vê-los criar, pensar, entender enfim conhecer! Nessa aventura do conhecimento eles são não apenas aprendizes, mas companheiros em perpétuo e prazeroso diálogo. Assim também meus colegas pesquisadores. Vejo-me em grupos de pesquisa e de trabalho onde muitas vezes sou a mais velha. E é muito estimulante ser assim, matriarca, decana, rejuvenescida pelas jovens e novas mentes que se somam à minha a fim de produzir o saber.
Por último, mas não em último lugar, vêm os amigos. Amigos, como vocês sempre foram importantes em minha vida! Mas como o são sobretudo agora. Porque os filhos vão voar seus próprios voos, sonhar seus próprios sonhos. Os alunos se formam e se tornam colegas. Ficam os amigos. São elas e eles que estão aí, presentes e ativos, ensinando e aprendendo essa derradeira e bela forma de amor que é a amizade. Com elas e eles posso recordar momentos que só nós compreendemos. Posso fazer memória de pessoas que já se foram e chorá-las em conjunto. Posso rir a bandeiras despregadas com situações das quais só nós temos os códigos. Amigos, poderia viver sem tudo, menos sem vocês. Merecem todos os agradecimentos do mundo.
Sem medo, mas com certa expectativa, olho para a frente. O que me reservará a vida nesses próximos tempos? Não sei nem posso saber, porém me é permitido esperar. Que seja o que é: vida. Com mais experiência, mais maturidade e ainda uma certa juventude de espírito que espero jamais perder. Melhor idade? Pode ser. Apesar dos pesares e com todas as alegrias.
Obs: Maria Clara Bingemer é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc).
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