Malu Nogueira 15 de maio de 2019

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Quem morou no sertão ou que viveu um pouco distante das capitais tinha um vocabulário bem peculiar, herdado, talvez da mistura de povos que aqui viveram na época da colonização, o convívio com índios, o caboclo, enfim a nossa miscigenação que nos permite agora refletir sobre a simplicidade de uma geração que vivia a felicidade da juventude, nas escolas e ruas, ao sabor dos ventos, com as janelas escancaradas, portas entreabertas, tomando banho de chuva, correndo atrás de tanajuras, jogando pedrinhas nas calçadas, pulando corda, sendo criança num tempo que não tem volta.

Era tudo tinindo de bom, era um passear e tirar umas linhas com um broto legal, era se arretar com as brigas em casa por não permitir ir às matinês. Isto sem esquecer dos assustados, com os discos, postos com todo cuidado nas radiolas,  mais irados da jovem guarda: “boneca linda”, “dá-me um martelo”, etc.

Na escola, sempre tinha uma colega que era mais sabida, outra mais abilolada, talvez zen demais, que sempre chorava quando ia ler os textos dos livros de linguagem, outra, mais enfronhada, divertia-se com as mazelas das demais. E nas aulas de educação física, lá vinha à professora que nos mandava ficar deitadas no chão quente com as pernas pra cima, cambitos a mostra. Algumas ficaram nos bancos, estavam doentes, naqueles dias, não podiam fazer esforço. Tempos idos, tempos fáceis, tempos inquestionáveis de pureza e encanto. Nada de frisos ou diademas nos cabelos, mesmo se fosse rebeldes.

Lembro que nas sextas-feiras já nos preparávamos para o final de semana, separávamos as roupas, lavávamos os cabelos, com pequenos xampus que se vendiam nas bodegas, nada de derramar, nada de se usar todo, depois fazíamos uma touca com tantos berilos que chegava a doer à cabeça ou colocávamos bobs, e laquê para penteados mais sofisticados como os coques, cascatas, cheios de cachos e mechas. As unhas das mãos e dos pés eram cortadas e posto os esmaltes mais lindos, pintadas com meia lua. Ficávamos em casa, às vezes tinha uma amiga que comprava um capricho, ou a revista intervalo, que contava as fofocas do povo da televisão.

Se alguma coisa não saísse como planejado, nada de faniquito, dar uma biloura, ou fazer uma fofoca com um segredo de uma amiga, mesmo que a língua ficasse fruviando para contar.

Assim era no meu tempo, que não tanto tempo que me passou. Nada de faniquito por não me lembrar, mas fico aqui encaquifada por não terem deixado tirar umas casquinhas com nenhum menino, nem me deixaram ir, de bigu, para o colégio, nem usar minissaia ou uma calça San Tropez, mas me bronzeei em casa com óleo e cenoura, coloquei minha farda embaixo do colchão para ela ficar arrumada para os desfiles de Sete de Setembro e usei sapato vulcabraz.

Velhos tempos, outros tempos. 26/03/2019.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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