Sempre me encantou a metáfora do olhar de Deus, sugerida por Nicolau de Cusa. “Deus vê a todos e a cada um indistintamente”, enfatiza o filósofo. O olhar divino, contudo, é materializado nas ações de Jesus. “Miserando Atqve Eligendo” (Olhando-o com misericórdia o elegeu), é o mote do brasão episcopal de nosso papa que se refere a vocação de são Mateus. O olhar é forte, comunica mais do que qualquer discurso bem elaborado. Há o olhar de desespero, de carência, de medo; há, por outro lado, o olhar de concentração e de espanto diante de acontecimentos que nos impactam. Ter sempre o outro sob os cuidados do nosso olhar é a missão mais genuína que podemos assumir. O contrário disso se chama pecado, ou seja, falta total de amor para com o próximo. Vejamos, por exemplo, o caso de Caim: quando cobrado pelo sangue de seu irmão, estava de cabeça baixa, não tinha a coragem de olhar. É o ciclo viciosa da violência que podemos entrar quando nos esquecemos da responsabilidade para com o próximo.
A páscoa abre os nossos olhos para vermos a realidade de modo completamente novo. As experiências pré-pascais são carregadas de incertezas sobre o tipo de messias que é Jesus. Mas com as aparições do Ressuscitado, os evangelhos apresentam uma mudança substancial: os olhos dos discípulos e das mulheres que seguiam Jesus se abrem e o anúncio desconcertante do kerigma ressoa em toda parte através dos lábios da primeira geração de discípulos. Qual é a fonte de tanta coragem?
A páscoa transforma o nosso olhar de choro em olhar de esperança: foi isso que experimentou Maria Madalena (cfr. Jo 20,11-18) quando logo cedo dirigiu-se apressadamente ao túmulo de Jesus. Tomada de tristeza e pelas lágrimas, não reconhece a vida nova que se apresenta diante de si. Porém, quando o Mestre a chama por nome, seu olhar se abre e sente a presença do homem que venceu a morte. Muitas vezes, em meio ao desespero, não conseguimos enxergar nenhum sinal de esperança devido o peso das nossas lágrimas.
Um olhar ferido, mas perdoado: esta é a emocionante experiência de Pedro. Possuído pelo medo, o papa pescador nega a Jesus, quando vem interrogado se pertence ao grupo do condenado à morte. Naquele instante sente vergonha e chora amargamente. Mas o Ressuscitado quando aparece às margens do mar de Tiberíades renova a vocação do pescador. Aquela pergunta “tu me amas?” abre os olhos de Pedro e a descoberta de sentir-se amado e perdoado o envia para anunciar ao mundo a Boa notícia que experimentou.
O modo pelo qual Jesus abre os olhos dos discípulos não é mediante nenhuma catequese doutrinal nem menos por meio de profissão de fé, é sim através do amor que pede a nossa fidelidade e a perseverança no caminho do discipulado, que nos perdoa e compreende, mesmo quando erramos. Esta pedagogia inaugura uma conversão espontânea, nos faz entrar na estrada da liberdade e da missão, ou seja, o ato de abrir os olhos, provocado pela páscoa, se trata do árduo processo de amar e deixar-se amar.
A maneira de Jesus abrir os olhos dos discípulos através das suas aparições é feita mais de modo pessoal que coletivo. Ele utiliza a conversa e a rememoração de tudo aquilo que disse e fez. Não se trata de doutrinação, é a arte do diálogo e da maiêutica que faz reacender o poder do Espírito Santo que está dentro de nós. Um cristianismo obcecado por multidões e por palcos, deve ser avaliado se, por trás de tanta parafernália, está realmente o kerigma (Deus nos amou a todos e nos salvou por sua misericórdia) ou se se trata de mero clericalismo para satisfazer o ego dos ministros do culto que querem atrair à atenção para si mesmo.
Quando insistimos numa páscoa de olhos abertos pensamos sobretudo na profecia de Jesus: Ele mesmo morreu de olhos abertos e com o rosto voltado para o mundo. De olhos abertos porque não esqueceu de ninguém (ver a todos e a cada um ao mesmo tempo). Na cruz, seu rosto está para o mundo: é o Deus que grita ao Pai e pede que o sofrimento da história não cai no esquecimento. Com a cruz e a ressurreição o rosto de Jesus traz as marcas de cada um de nós. Mesmo que alguns queiram mascarar a realidade com o ilusório discurso de progresso e de bem-estar, a páscoa de Jesus por outro lado, continua sendo um grito e um apelo de responsabilidade para amarmos sobretudo aqueles que foram empurrados para a penumbra; para acolhermos aqueles que nós não queremos olhar. Por isso, eu desejo que sua páscoa seja diferente, que seja realmente uma páscoa de olhos abertos!
Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. Atualmente reside em Roma, cursando mestrado em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.