
Ainda estava no começo de minha judicatura na comarca de Nossa Senhora da Glória. Despachava e fazia audiências na sala da entrada da Prefeitura Municipal. Não tínhamos fórum ainda. A tarde corria lenta e morna, até que me faltaram feitos para despacho. Fiquei na porta da Prefeitura na apreciação da diminuta movimentação da praça em frente. A outra alternativa seria de retornar ao hotel.
Foi, então, que chegou uma mulher, perguntando quem era o juiz. E aí soltou o verbo. Queria saber se saindo de casa perdia algum direito, porque algum civilista da terra assim afirmou. Há sempre um jurista como vizinho ou conhecido, a dar palpite. Respondi que desconhecia qualquer dispositivo a respeito. Ela abriu o jogo: apanhava do marido, ia deixar a casa, com filhos e tudo, para voltar a casa dos pais, saindo na mesma pressa com que tinha chegado.
Tempos depois, a mulher reapareceu. Se eu me lembrava dela? Claro que só me recordei da conversa quando ele fez menção ao diálogo que tivemos na porta da Prefeitura. E agora, qual o problema? Bem, os filhos queriam que ela retornasse para casa, o marido assim pediu, mas ela estava em dúvida se deveria voltar ou não e queria me ouvir. Bom, e agora? Eu lá dar conselho, nem meter o bedelho na vida de um casal?! Receber as pessoas dava nisso, em conversas mais para assistente social do que para magistrado. O diabo é que o Corregedor de então pedia, exigia, na temática de aproximar a Justiça do povo, e, entonce, eu, essencialmente formalista, não tinha outro jeito senão abrir espaço porque gente não faltava para contar histórias e pedir providências.
Eu devolvi a pergunta com várias outras – quem ia cozinhar para o marido?, quem ia lavar as roupas dele?, quem ia varrer a casa dele?, – ao que ela respondia que era ela, que era ela, até que eu avancei o sinal para deixar bem claro que a legitimidade para a solução de voltar ou não era somente dela: e quem é que vai dormir com ele? A mulher parou, pensou, soltou um riso suave, e fazendo uma leve careta na boca, deve ter chegado à conclusão que a decisão, realmente, era dela. Saiu, sem se despedir. Não sei se voltou. E se apanhou outra vez, não mais me procurou. (3 de outubro de 2018)
Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras