Leonardo Boff 15 de fevereiro de 2019

 

O Brasil parece tomado por um luto que nunca termina. As pessoas andam acabrunhadas por causa do desemprego e pelas reformas conservadoras que o novo governo pretende introduzir, tirando direitos dos trabalhadores e atacando diretamente várias políticas sociais que beneficiavam os mais destituídos. Estudantes universitários que viviam com bolsas do governo tiveram que interromper seus estudos. Reformas na educação nos remetem à fase anterior ao Iluminismo, em alguns pontos, à Idade Média. Uma sombra escura pesa sobre o rosto de milhões de compatriotas.

Parece que cada dia acontece algo sinistro. Sem dúvida o grande luto nacional foi o criminoso desastre de Bromadinho-MG que, com o rompimento  da barragem da mineradora Vale, foram dizimadas centenas de vidas em meio a um tsunami de  resíduos minerais, lama e água, poluindo o rio por dezenas de quilômetros.  Luto foi a morte do conhecido jornalista Ricardo Boechat com a queda de um helicóptero. Luto foi a morte da grande artista, cantora e diretora Bibi Ferreira. E outros que caberiam ser citados.

Abordamos o tema do luto há pouco tempo atrás. Mas a situação é assim grave que nos convida dar-lhe um tratamento especial. Ao invés de utilizar a abundante literatura atual existente sobre o tema, permito-me relatar uma experiência pessoal que aclara melhor a  necessidade de cuidar do luto.

Em 1981 perdi uma irmã  com a qual tinha especial afinidade. Era a última das irmãs de 11 irmãos. Como professora, por volta das 10 horas da manhã, diante dos alunos, deu um imenso brado e caiu morta. Misteriosamente, aos 33 anos, rompera-se-lhe a aorta por causa de uma doença rara.

Todos da família vindos de várias partes do país, ficamos desorientados pelo choque fatal. Choramos copiosas lágrimas. Passamos dois dias vendo fotos e recordando, pesarosos, fatos engraçados da vida da irmãzinha querida.

Eles puderam cuidar do luto e da perda. Eu tive que partir logo após para o Chile, onde tinha palestras para franciscanos de todo o Cono Sul. Fui com o coração partido. Cada palestra era um exercício de autosuperação. Do Chile emendei para a Itália onde devia falar para religiosas de toda uma congregação.

A perda da irmã querida me atormentava como  algo absurdo e insuportável.  Comecei a desmaiar  duas a três vezes ao dia sem uma razão física manifesta. Tive que ser levado ao médico. Contei-lhe sobre o drama que estava passando. Ele logo intuiu e disse:

“Você não enterrou ainda sua irmã nem guardou o luto necessário; enquanto não a sepultar e cuidar de seu luto, você não melhorará; algo de você morreu com ela e precisa ser ressuscitado”.

Cancelei todos os demais programas.  No silêncio e na oração cuidei do luto. Refeitos, num restaurante, enquanto lembrávamos da irmã querida, meu irmão também teólogo, Clodovis, e eu escrevemos num guardanapo de papel esta pequena reflexão:

“Foram trinta e três anos, como os anos da idade de Jesus.

Anos de muito trabalho e sofrimento,

Mas também de muito fruto.

Ela carregava a dor dos outros

Em seu próprio coração, como resgate.

Era límpida como a fonte da montanha,

Amável e terna como a flor do campo.

Teceu, ponto por ponto e no silêncio,

Um brocado precioso.

Deixou dois pequenos, robustos e belos.

E um marido, cheio de orgulho dela.

Feliz você, Cláudia, pois o Senhor voltando.

Te encontrou de pé, no trabalho

Lâmpada acesa.

Foi então que caíste em seu regaço,

Para o abraço infinito da paz”.

Entre seus papéis encontramos a frase:”Há sempre um sentido de Deus em todos os eventos humanos: importa descobri-lo”. Integramos o luto mas ficou  uma ferida que nunca se fecha. Até hoje estamos procurando o sentido daquela frase misteriosa. Um dia se revelará.

Obs: Leonardo Boff é teólogo e filósofo e escreveu: O cuidado necessário, Vozes 2012.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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