Bem no início do Livro Êxodo se encontram as seguintes palavras:
‘o mensageiro de Ihwh se fez ver (ao pastor de ovelhas de nome Moisés) numa chama de fogo no meio do mato (matagal, sarça, espinhal) (v. 2-3).
Deus o chama do meio do fogo: Moisés,Moisés.
E Moisés: Estou aqui.
Deus diz: Não se aproxime. Tire as sandálias de seus pés, pois esta terra é terra sagrada. Eu sou Deus de seu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó.
Ihwh diz: sim, eu vejo bem a opressão de meu povo no Egito, eu escuto seus gritos sob os guardas, sim, eu conheço seus sofrimentos. Agora, o grito dos filhos de Israel chegou a mim, eu vi a opressão causada pelos egípcios.
Agora vai, eu o envio ao Faraó. Faça sair meu povo, os filhos de Israel, do país do Egito (vv. 5-10).
Aqui, nas Fronteiras, o mesmo Deus de Abraão, Isaac, Jacó e Moisés chamou Helder Câmara pelo nome.
‘Helder, Helder’.
‘Estou aqui’.
‘Tire as sandálias, pois Fronteiras é terreno sagrado. Eu vejo bem a opressão de meu povo no Nordeste, eu escuto seus gritos sob as autoridades, sim, eu conheço seus sofrimentos. Agora, o grito dos filhos do Nordeste chegou a mim, eu vi a opressão causada pela máxima autoridade do país’.
Até hoje, essas palavras ressoam pela Igreja das Fronteiras, que é território sagrado. Durante mais de trinta anos (entre 1968 e 1999) aqui viveu um homem que soube ouvir as palavras. A chama de Deus continua ardendo para quem tiver os olhos de Helder Câmara, os ouvidos de Helder Câmara, o coração de Helder Câmara.
Roma 1965.
O cenário geral.
Em 1965, cerca de 2.500 bispos católicos estão reunidos no Vaticano, nos amplos e ricos espaços da Basílica de São Pedro. Eles são das mais variadas tendências. Há uma maioria que não sabe bem o que está fazendo em Roma. Sei de um bispo que nos intervalos entre as sessões na Basílica e dos momentos de alimentação (tudo de graça) jogava xadrez com um colega. Outros devem ter jogado cartas ou lendo qualquer coisa. De qualquer modo, a maioria não estranha estar na opulência do Vaticano e acha até que isso convém à dignidade episcopal.
Vou descrever em linhas curtas as diversas tendências que se manifestam entre os bispos, baseado no livro ‘O Pacto das Catacumbas’, de José OscarBeozzo, que acaba de ser lançado pelas Edições Paulinas.
O principal agrupamento de bispos à direita goza da simpatia (implícita) da Cúria Romana e da grande imprensa europeia, controlada por forças políticas e econômicas que optam por uma Igreja conservadora. É o chamado Coetus Internationalis Patrum (CIP: Composição Internacional de Padres), que tem como ponto de referência o bispo francês Marcel Lefebvre e como liderança mais visível o bispo brasileiro Geraldo Sigaud. Segundo Beozzo, o ‘Coetus’ reune mais ou menos 300 Padres conciliares, mas sua força é bem maior.
Resulta mais difícil apontar os movimentos da ala esquerda. Aparecem nomes de lideranças carismáticas que por assim dizer simbolizam determinados posicionamentos. Assim o Grupo da Revista Concilium com Yves Congar, o Grupo do ‘Ecumênico’ com o Cardeal Bea, o Grupo ‘alegrias e esperanças’ (que deu nome ao documento conciliar Gaudium et Spes) com François Houtart, o Grupo ‘Opus Angeli’ (que atua na ‘Domus Mariae’) com Helder Câmara, e assim por diante. Nomes como Dell’Acqua, Capovilla, Colombo, Suenens, Lercaro, Liénart ou Doepfer também aglutinam posicionamentos. Esses nomes conferem um certo contorno a correntes, blocos, grupos, que frequentemente se sobrepõem, entrosam, combinam e em determinados momentos se aglutinam.
Mas há um grupo que se destaca pela firmeza de posicionamento e profundidade de questionamento: o da ‘Igreja dos Pobres’. Não aparece em alto relevo na história do Concílio, pois atua de forma discreta, quase tímida. Só na terceira Sessão, em novembro de 1964, propõe publicamente dois documentos que recebem a adesão de mais de 500 Padres conciliares: ‘Simplicidade e pobreza evangélica’ e ‘Para que em nosso ministério [episcopal], se dê o primeiro lugar à evangelização dos pobres). Beozzo fala aqui da constituição de uma ‘rede conciliar’, ou seja, de um elo que perpassa diversos segmentos do universo episcopal reunido em Roma e que consiste basicamente no apoio, pelo menos formal, dado às palavras do papa João XXIII no discurso inaugural do Concílio (11 de setembro de 1962): a Igreja tem de ser ‘principalmente uma Igreja dos pobres’. Com essas palavras, o termo ‘pobre’ ganha um estatuto epistemológico que conserva durante decênios em meios eclesiais, principalmente na América Latina. No grupo ‘Igreja dos Pobres’, o nome que mais se destaca é o do Padre-operário francês Paul Gauthier, animador dos ‘Companheiros de Jesus carpinteiro’ em Nazaré. Em Roma, as reuniões desse grupo costumam se realizar no apartamento do Padre Gauthier ou no Colégio Belga.
O que une os bispos da ‘Igreja dos Pobres’ é um comum afeto, uma sensibilidade compartilhada. Numa Roma eclesiástica feita de símbolos de poder, ou seja, no Vaticano, esses bispos não se sentem bem. Aparece a imagem das ‘catacumbas’, que sugere uma Igreja ‘subterrânea’ e perseguida.
Três semanas antes da conclusão do Concílio, no dia 16 de novembro de 1965, alguns membros da ‘Igreja dos Pobres’ se reúnem na Catacumba de Santa Domitila em Roma. Dois meses antes, em 12 de setembro, o papa Paulo VI esteve na catacumba Santa Domitila, mostrando um apoio simbólico à ideia de uma ‘igreja das catacumbas’. Mas coisa concreta mesmo vem com a missa concelebrada, presidida por Mons. Himmer, bispo de Tournai na Bélgica. Os bispos presentes firmam entre si o chamado ‘pacto das catacumbas’, um compromisso de vida ‘para anunciar uma boa nova aos pobres’. Tudo de forma muito discreta, quase clandestina. Só três semanas depois, no dia do encerramento do Concílio (8 de dezembro de 1965), o jornal francês Le Monde publica, sem muito relevo, uma nota acerca de ‘um grupo de bispos anônimos que se compromete a dar o testemunho exterior de uma vida de pobreza estrita’. A nota é assinada pelo jornalista Henri Fesquet, observador do Concílio em nome de dito jornal.
Anos depois, por meio de uma pesquisa realizada nos papeis do bispo Himmer, se conseguiu resgatar a lista dos participantes, como revela Beozzo numa Nota que se encontra na Internet. Os signatários são 39, na quase totalidade bispos. Há alguns sacerdotes (como o Padre Luiz Gonzaga, sagrado bispo poucos dias depois, e Paulo Gauthier). Registra-se igualmente a presença de uma mulher, Marie Thérèse Lescaze, carmelita francesa residente na Palestina, participante do grupo em torno do padre Gauthier. Oito bispos brasileiros assinam (uns na hora, outros depois) o documento: Antônio Fragoso de Crateús, CE; Francisco Austregésilo Mesquita Filho de Afogados da Ingazeira, PE; João Batista da Mota e Albuquerque, arcebispo de Vitória, ES; Luiz Gonzaga Fernandes (que está para ser sagrado bispo auxiliar de Vitória, dias depois) Jorge Marcos de Oliveira de Santo André, SP, Helder Câmara de Recife, PE; Henrique Golland Trindade, arcebispo de Botucatu, SP; José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, PB. Helder não está presente na hora, embora Beozzo escreva que ele seria o autor do texto, como realça Beozzo. Nos anos 1990, são principalmente os bispos José Maria Pires, Valdir Calheiros, Antônio Fragoso e Adriano Hipólito que rememoram o pacto.
De outros países da América Latina assinam dez: Manoel Larrain de Talca no Chile; Marco Gregorio Mc Grath do Panamá (diocese de Santiago de Veraguas); Leonidas Proaño de Riobamba, Equador; Alberto Devoto de Goya, Argentina; Vicente Faustino Zazpe e Enrique Angelelli, bispo de Rioja, assassinado pelo governo militar, da Argentina; Juan José Iriarte de Reconquista, Argentina; Alfredo Viola, bispo de Salto, Uruguay, e seu auxiliar, Marcelo Mendiharat; Tulio Botero Salazar, arcebispo de Medellín e seu auxiliar, Medina, da Colômbia. Da Itália assinou Luigi Betazzi, naquela época auxiliar do cardeal Lercaro em Bologna. Da França há os seguintes nomes: Guy Marie Riobé, bispo de Orleans, Gérard Huyghe de Arras e Adrien Gand, bispo auxiliar do Cardeal Liénart em Lille.
Nos papeis de Mgr.Himmer ainda aparecem outros nomes, de diversos países: Georges Mercier, bispo de Laghouat no Sahara, Hakim, bispo melquita de Nazaré, Haddad, bispo melquita, auxiliar de Beirute, Gérard Marie Coderre, bispo de Saint Jean de Quebec do Canadá, Rafael Gonzalez Moralejo, auxiliar de Valencia na Espanha, Julius Angerhausen, auxiliar de Essen na Alemanha, Muñoz Duque de Pamplona, Raúl Zambrano de Facatativá e Angelo Cuniberti, vigário apostólico de Florencia. Da África assinaram Bernard Yago, arcebispo de Abidjan na Costa do Marfim, Joseph Blomjous, bispo de Mwanza, na Tanzânia; da Ásia, Charles Joseph de Melckebeke, belga, bispo de Ningsia na China, expulso e morando em Singapura. Havia também bispos do Vietnã e Indonésia.
Os símbolos do Pacto, como trocar o ‘anel joia’ pelo simples ‘anel do pescador’, simplificar vestimentas litúrgicas e abandonar o estilo pomposo tradicional, significam um compromisso de vida muito concreto, em termos de moradia (abandono do ‘palácio episcopal), transporte (automóvel simples), riqueza pessoal (não ter dinheiro pessoal no banco). Enfim, os bispos unidos pelo Pacto se comprometem a viver como vivem as pessoas comuns do país onde residem.
Tudo isso acontece de forma muito discreta, quase clandestina, o que mostra fortes resistências no corpo episcopal em geral diante da ideia de uma ‘igreja dos pobres’. O Pacto, até hoje, continua influenciando o estilo do episcopado católico. As pessoas ficam mais atentas ao modo em que o bispo se comporta, além das palavras e dos discursos. Isso é um ganho definitivo e nesse sentido podemos dizer que o Pacto das Catacumbas constitui o evento mais importante ocorrido dentro do Concílio Vaticano II.
Como Helder Câmara enxerga esse cenário.
Desde antes do Concílio, Helder Câmara, o bispo auxiliar do Rio de Janeiro, se destaca. Num questionário enviado a todos os bispos pelo Vaticano, a maioria dos bispos afirma que o grande problema do mundo é a oposição entre capitalismo e comunismo, entre os Estados Unidos e a União Soviética, entre religião e secularismo ou mesmo ateísmo. O grande inimigo é o comunismo ateu. A resposta de Helder é totalmente diferente: o grande problema e que dois terços da humanidade vivem na pobreza, tem problemas endêmicos de fome, doença, habitação. É preciso dizer com todas as palavras que Helder Câmara é um dos pouquíssimos homens do Concílio que têm ‘visão’, como escreveu o teólogo Congar. As Cartas Circulares de Helder começam com as seguintes palavras: ‘O Concílio vai ser dificílimo’. Isso diz tudo.
Aqui faço uma observação: vocês podem estranhar que não uso o termo ‘Dom’ para falar de Helder Câmara. Nisso sigo o ponto n. 5 do Pacto das Catacumbas, que reza: ‘Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor…). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. (Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15)’. Ou irmão, simplesmente.
Consultei o Tomo 3 do Volume 1 das Cartas e alguns tópicos me chamaram a atenção:
- Na Carta Circular de 16-17 de novembro 1965, escrita na vigília logo depois da assinatura do pacto, não se encontra nada acerca do Pacto das Catacumbas. Só aparecem referências esparsas sobre ‘concelebrações’. É que Helder tem outros compromissos na hora, na está na Catacumba Santa Domitila na hora.
- Só mais de dez dias depois, nas Cartas de 29-30/11 e 01-02/12 (Cartas I, 3, 301 e 304) se relatam os 13 pontos do Pacto.
- Em geral, as informações são meio desencontradas. Na p. 301 se escreve que todos os 2.500 Padres Conciliares recebem uma folha mimeografada sobre o grupo da pobreza, redigida na casa de Père Paul Gauthier. Parece que 500 reagem positivamente (depoimento de Antônio Fragoso), mas não sabemos qual foi o resultado concreto disso, na vida desses bispos ao retornar às suas dioceses. Mas outros reagem negativamente. Na p. 322, Helder escreve que alguns bispos fazem ‘gozação’ do gesto papal em trocar o anel de brilhantes com o ‘anel do pescador’. Isso mostra que houve também resistência à ideia da pobreza episcopal.
- Na p. 322 se escreve que, nos últimos dias do Concílio, Helder encaminha ao papa o texto do Pacto.
A impressão que a leitura dessas Cartas deixa é que o bispo, nas últimas semanas do Concílio, anda envolvido em muitas coisas. Ele gostaria de saber se o papa aceita os três textos fortes que ele escreve no final do Concílio. É isso que ocupa a mente de Helder nas últimas semanas do evento.
O que fica muito claro é que Helder mostra aversão às pompas romanas. Para ele, o Vaticano é uma corte papal, a mais impressionante corte existente em todo o mundo ocidental. Há imagens alucinantes espalhadas pelas páginas das Cartas Circulares. O bispo vê o Imperador Constantino (do século IV) atravessar a Basílica de São Pedro num cavalo em pleno galope. Numa outra visão, o papa joga a Tiara no Tibre e anda enlouquecido pelas ruas de Roma, onde se encontra com prostitutas e ladrões. Ele se imagina que o papa cede o Vaticano a uma instituição (da UNESCO?), especializada em administrar museus e vai morar num apartamento em Roma. Dispensa embaixadores no Vaticano e núncios do Vaticano. Dispensa o Vaticano. Assim ele pode empreender com rapidez a reforma da Cúria papal romana (a corte papal).
Aconselho vivamente a leitura dessas Circulares, pois cada uma traz alguma surpresa. Quando menos se espera aparece uma frase absolutamente genial, nos mais diversos sentidos. Por exemplo sua avaliação, historicamente impecável, do concílio de Niceia do século IV (I, 3, 265), ou quando desabafa: com cardeais é ‘humanamente impossível’ trabalhar (I, 3, 268), ou ainda quando escreve que citar textos de Isaías é muito bonito, mas que o povo não entende palavras como Sião, Israel etc. e que é preciso dizer as coisas com palavras que as pessoas entendem. Faíscas de um espírito excepcional que aparecem aqui e acolá nas Cartas.
Recife 1968.
Em primeiro lugar, há o Palácio Episcopal São José dos Manguinhos, na Avenida Rui Barbosa, um solar construído pelo Visconde de Loyo, comerciante recifense de sucesso, no século XIX (Dom Pedro II distribuía à torta e direita títulos de Condes, Barões, Viscondes, para melhor controlar seu imenso império), com muitas mangueiras. Há, ao lado, a Igreja São José dos Manguinhos, como costuma haver em solares de gente rica. No início do século XX, a Arquidiocese adquire o solar e o transforma em residência episcopal. Tudo no tradicional estilo eclesiástico.
Há, em segundo lugar, mais em direção ao centro histórico da cidade, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção das Fronteiras, no limite de uma estância concedida pelo rei de Portugal em 1656 ao militar mestiço Henrique Dias, combatente ao lado dos portugueses na guerra contra os holandeses que resultou na Restauração Pernambucana. O imperador Pedro II visitou o local em 1859 e lhe deu o título de Imperial Capela. A Arquidiocese de Olinda e Recife recuperou essa capela depois da guerra das confrarias. Mas, em 1968, tudo isso é passado. A Igreja das Fronteiras serve de capela para uma casa de religiosas e tem, como todas as capelas, uma sacristia e um ponto de apoio para o capelão.
O cenário contraste entre Manguinhos e Fronteiras lembra a oposição entre o Vaticano e as Catacumbas. Helder deixa o ‘latifúndio’ Manguinhos par ir morar ‘na minha casa’, nas Fronteiras.
A leitura da Cartas Circulares do ano 1968 foi uma surpresa para mim. Mesmo conhecendo de perto os trabalhos de Helder Câmara por colaborar com ele ao longo de 16 anos (entre 1964 e 1980), a leitura das Cartas Circulares foi uma surpresa para mim. Que riqueza, quanta novidade!
Aqui faço mais uma observação. Agradeço o convite de vocês que me deu a oportunidade de me meter nessas Circulares. Agradeço especialmente aos compiladores, transcritores e editores das Cartas: Luis Carlos Marques e Roberto de Araújo Faria (vol. I), Zildo Rocha (vol. II, III, IV) e Daniel Sigal (vol. III e IV), que fizeram e continuam fazendo um trabalho de valor inestimável.
As Circulares do ano 1968 se encontram nos Tomos 1 e 2 do Volume IV. É o ano da mudança do Palácio dos Manguinhos à sacristia das Fronteiras. Uma mudança que não só tem consequências para a vida pessoal do bispo, mas também para a vida da Arquidiocese.
– Em termos pessoais, Helder dispensa o carro particular, o secretário particular, a comida pronta na hora certa, a cozinheira de Manguinhos. Doravante, seu cardápio é precário. De manhã, as Irmãs das Fronteiras lhe preparam um café. Ao meio dia, ele almoça no Colégio das Damas, na Avenida Rui Barbosa, e de noite ele se vira sozinho. Seu quarto de dormir comporta uma cama e uma cadeira. Ele comenta: ‘moro com dois mortos e um Vivo (Jesus no sacrário)’. Há uma salinha que para receber as pessoas e escrever suas Circulares pela noite. Ela comporta uma mesa redonda, três cadeiras e, no fundo, uma rede cearense estendida. Nas paredes algumas lembranças de viagens e alguns textos fortes.
1. Na Circular de 5 a 6 de janeiro 1968 (n. 344, Helder se mostra entusiasta com a mudança (p. 295), planejada para o dia de São Sebastião (21/1), o que não acontece por falta da remoção de dois sepulcros e arranjos atrás do altar (p. 317). Ele sabe que essa mudança acarreta uma remodelação das funções de alguns prédios da Arquidiocese. O sonho do bispo é que tanto Manguinhos (que ele chama ‘latifúndio’, ‘casa demais para um bispinho só’, veja p. 383) como o antigo Palácio episcopal de Olinda sejam doravante ‘Casas do Povo’. Camaragibe, ‘o porta-aviões’ (p. 312), seria vendido fundo financeiro, assim criado, serviria ‘em boa parte para um esquema de casas populares’.
Mas seus auxiliares não têm voos tão altos. Na realidade, os planos de mudança do bispo acarretam uma complexa acomodação de prédios. Há também, ao mesmo tempo, a decisão que toca a vida dos seminaristas. Doravante, o programa é que eles vivam em ‘pequenas comunidades no meio do povo’. Tudo isso mexe com Manguinhos, Palácio episcopal colonial em Olinda, Seminário de Olinda, o prédio na Rua do Jiriquiti, Camaragibe. Enquanto os auxiliares ponderam as reais possibilidades, Helder continua falando em Casas do Povo. Ele sonha em doar casas para abrigar pessoas sem teto. Por que manter duas salas de trono no ‘latifúndio’ Manguinhos, enquanto na varanda dormem pessoas sem teto? O bispo fica triste quanto seus auxiliares se veem na obrigação de arranjar um vigia para controlar a vida dos que dormem na varanda, ele tem medo que esse vigia chegue a usar violência e talvez chegue a atirar contra alguém.
2. Dez dias depois, na Circular 348 (16-17/1/68) se escreve que a equipe central do seminário já mora ‘nos altos’ (primeiro andar) da Casa do Povo, com alguns professores, enquanto o Seminário colonial de Olinda vira Centro de Treinamento de Líderes para o Nordeste II (modelo Eugênio Sales). O que complica tudo é que Roma não gosta da ideia de seminaristas vivendo ‘no meio do povo’. O Cardeal Garrone escreve uma carta nesse sentido e manda Monsenhor Pavarello para Recife, para verificar a situação ‘in loco’. Esse Monsenhor fica bastante tempo e colhe muitas informações.
3. Na noite do 13 a 14 de março (Circular 375) vem a notícia definitiva: quando o dia amanhecer, vou me mudar para as Fronteiras. Isso é um ‘sinal completo’: ‘vender Manguinhos e investir o dinheiro em favor da promoção de filhos de Deus subhumanizados pela miséria’. Na mesma Carta aparece uma primeira descrição da nova morada com avaliação daquilo que o bispo gosta mais: portas sem trancas; janelas sem grades; entradinha pelo jardim; ‘em obras’; a cama de madeira (a de Manguinhos era em bronze dourado); a companhia, na hora de dormir, de dois mortos (sepulcros) e um Vivo (sacrário).
4. No dia 14 de março de 1968, às 19 horas, Helder entra na nova casa (p.40). Daqui por diante, seus percursos diários mudam: de Fronteiras a Manguinhos, de Manguinhos às Damas (na mesma Avenida, para o almoço), das Damas retorno aos Manguinhos e no final do expediente de Manguinhos às Fronteiras. Se transporte depende de táxis, mas na realidade não há taxista que queira cobrar a corrida (p. 52). Essa informação se repete em 22-23/5/68.
5. Quinze dias depois, na Circular de 27-28/3/ 68 (IV, 1, 59) vem uma nova prova de que o bispo gosta na nova casa: no quarto de dormir, a janelinha com ferrolho, que indica onde fica o Sacrário (onde mora o Vivo), a seteira em cima, que ‘deixa à vista uma nesga do céu, como uma estrelinha linda’ (mais tarde, ele me aponta essa seteira e diz: ‘como é fácil lançar uma bomba por aí’), a janela sem grades que dá para outro jardim, por trás da sala de estar, a mesa redonda, onde ele pode escrever suas circulares durante as vigílias, as rosas no jardim, as três garrafas térmicas (chá quente, refresco gelado, água) que as irmãs deixam prontas, assim como potes de vidro como com biscoitos etc. Enfim, Helder gosta da nova morada. Isso fica muito claro.
Em tudo isso, o bispo segue à risca o primeiro compromisso do Pacto das Catacumbas: ‘procuraremos viver segundo o modo ordinário de nosso povo no que toca a casa, comida, meios de locomoção, e a tudo que disso se desprende (Mt 5, 3; 6, 33s; 8-20)’. Tenho por mim que ele é um dos que seguem com maior fidelidade dos compromissos assumidos no Pacto das Catacumbas, embora faltem dados comparativos para comprovar essa opinião. Só possuímos informações parciais (de Antônio Fragoso, José Maria Pires, Valdir Calheiros, etc.).
Nós hoje no terreno sagrado.
Hoje nós estamos aqui nas Fronteiras, no terreno sagrado, 50 anos depois do Pacto das Catacumbas em Roma e 47 anos depois que o bispo Helder Câmara se mudou para cá. Sentimos responsabilidade, pois diversos entre nós, como eu pessoalmente, somos testemunhas oculares do que aqui acabo de relatar pela leitura das Circulares. De uma ou outra forma, as palavras do Evangelho de João se aplicam a nós:
Ele veio como testemunha,
Testemunha da luz (Jo 1, 7)
Helder Câmara é para nós como o enviado de Deus no prólogo do Evangelho de João. Ele testemunhou da luz e nós temos de testemunhar também, como diz o mesmo Evangelho:
Vocês vão testemunhar,
Pois estão comigo desde o começo (Jo 15, 27).
Testemunho de quem viu é testemunho autêntico (Jo 19. 35).
A nossa reunião aqui não é apenas comemoração, é responsabilidade. Temos de ‘testemunhar’ nos dias de hoje acerca do que aconteceu aqui entre 1968 e 1999, e continua acontecendo em nossa vida. Doravante não se trata mais da pessoa física de Helder Câmara, mas de seu espírito que continua vivo e que impregna o local em que estamos. O que podemos fazer?
- Explico pela história. Vaticano não é Catacumba e Manguinhos não é Fronteiras. O que simboliza o Vaticano? Historicamente não há dúvida: o Vaticano simboliza o uso incorreto do dinheiro dos pobres. Peregrinos, ao longo de muitos séculos, depositaram imensas somas de dinheiro nos pretensos túmulos de Pedro e Paulo em Roma. Isso constitui, até hoje, a base do Vaticano, não só dos palácios esplêndidos, mas igualmente a corte imensa de monsenhores, reverendos, eminências, purpurados e mitrados. Grande parte dessa riqueza está sendo vergonhosamente desviada em muitos casos, como comprovam fatos recentes. O que simboliza Manguinhos? Opulência cercada por pobreza, títulos honoríficos, prepotência. Não sei de escândalos ligados a Manguinhos, mas mesmo assim penso que se trata de um contrassinal, em termos evangélicos, um bispo residir em palácio.
O que é catacumba, historicamente? É sepulcro digno para todos os escravos, sejam ou não cristãos. Eis a política dos administradores de catacumbas como Calixto, chegou a ser eleito papa, no século III. Optar pela Catacumba é optar por um modelo de vida que dá oportunidade a todos e todas, acima de qualquer clausura. Vocês entendem que estou falando de coisa prática. Quando Helder optou por Fronteiras, ele optou na realidade por um modo de vida que não condiz com palácio, honra, prestígio, mas com compromisso com os mais débeis da sociedade.
- Claro, tudo depende das condições concretas de nossas vidas. Não somos bispos nem sacerdotes. Talvez nem sejamos católicos e mesmo assim somos testemunhas de Helder Câmara e do Pacto das Catacumbas. O simbolismo é claro, significa um modo de viver e agir que se destaca do modo de viver orientado para lucro e acumulação de dinheiro. Todos e todas podemos fazer algo. Não há regra que valha para todos e todas. Cada um, cada uma tem de ver o que pode fazer. Os bispos deixaram o palácio, alguns se deslocavam sem ter automóvel particular (como Helder), por vezes dispensaram a cozinheira (como Helder), recusaram títulos honoríficos e contas pessoais em bancos. E nós, o que fazemos na vida concreta?
Não é fácil vivenciar hoje o Pacto das Catacumbas. Duas coisas, penso, podem nos ajudar: (1) a espiritualidade; (2) a participação em algum grupo de inspiração cristã.
- A espiritualidade.
Na ocasião em que se lançou o Tomo I, 1 das Circulares, Zildo Rocha pronunciou uma linda conferência que teve como título: ‘O papel da Vigília na Espiritualidade de Dom Helder’. Nela, Zildo afirma que todos os dias de Helder estavam assentados em dois pontos: a missa e a vigília. Dois momentos que colocam a vida do bispo ‘numa perspectiva de eternidade’ e nos situam de frente com Deus. José Comblin disse o mesmo, aqui neste local, em 2001: Helder é antes de tudo um místico. A leitura que fiz das Circulares me convence do mesmo. Cada Carta se inicia com uma reflexão de tipo espiritual. Não sei se ele comenta liturgia passada ou liturgia do dia seguinte, não verifiquei isso. Mas verifiquei que, para ele, a espiritualidade vem em primeiro lugar. Sem conversar com seu Deus pai, Jesus irmão, José anjo da guarda, Helder não teria aguentado tanta derrota, tanto fracasso. Seu dia era um desdobramento da missa e da vigília.
Vejo Helder entrando na sinagoga de Nazaré e desenrolado o texto de Isaías, como vai relatado no capítulo 4 do Evangelho de Lucas:
Um Sopro do Senhor está sobre mim;
Por ele fui designado (ungido, messias, escolhido) para anunciar uma boa notícia aos pobres.
Mandado por ele, eu declaro aos prisioneiros a libertação,
Aos cegos que vão enxergar de novo,
Aos oprimidos que serão perdoados (veja Isaías 61, 1-2 e 58, 6).
Quando Jesus diz que está com os ‘pobres de espírito’ (Mt 5, 3), ele se refere a Isaías 57, 15:
Estou com os derrotados
Os sopros humilhados
Reanimo os sopros dos humilhados
Reanimo o coração dos derrotados.
Eis a espiritualidade bíblica de Helder Câmara, que lhe deu forçs para aguentar um episcopado repleto de problemas com a ditadura política (padre morto, outros exilados) e ao mesmo tempo com o Vaticano (papa Paulo VI dúbio, os colegas no episcopado indecisos).
Na sala de estar de Fronteiras, li a seguinte mensagem enquadrada:
Quanto mais negra a noite
Mais perto a madrugada.
- A participação em algum grupo de inspiração cristã.
A psicologia ensina que sem grupo não se sustenta uma ação duradoura. É o que Helder experimenta após os sensacionais sucessos de suas viagens na primeira parte dos anos 1970. Em todo canto enorme entusiasmo na hora. Depois nada. Foi duro, para um homem de palco e de microfone, de centro de cena e de grandes conglomerações, perceber que suas ideias de unificação das universidades em torno de ideias de libertação etc. não deram em nada, assim como o Vaticano II em muitos aspectos não deu em nada. Ele se queixava: ‘como é difícil romper estruturas’. Foi nesses desencantos que Helder descobriu a força das minorias, das ‘minorias abraâmicas’. Essa expressão é feliz, pois abarca muitos movimentos, além do cristianismo, indo ao judaísmo e ao islamismo e mesmo além. Grupos físicos (como Igreja Nova) ou grupos virtuais, como os que se formam em torno de Alder Calado na Paraíba, de Adital no Ceará, de Somos Iglesia no Chile, de Ameríndia, e muitos outros, que se alargam sempre mais.
Ainda uma palavra sobre grupos formados por mulheres. Não podemos esquecer que devemos as Cartas Circulares ao fato que Helder, desde seus tempos no Rio de Janeiro, sempre se relacionou com sua ‘família mecejanense’, um grupo de mulheres como Cecília Monteiro, Marina Bandeira e outras. Até hoje a igreja clerical patina porque não entende o poder das mulheres, que se manifestou de forma tão clara pela aceitação mundial da pílula anticoncepcional desde 1961. O Sínodo que se realizou em outubro terminou em nada porque os padres sinodais ainda não compreendem o poder das mulheres, ou melhor, não compreendem que as mulheres também revelam Deus. Se elas, desde 1962, não escutam mais os padres, é que algo está errado com o ensino dos padres. Os papas ficam angustiados, mas deviam aprender com Helder Câmara que mostrou que as mulheres ajudam a livrar a igreja do papa.
Para terminar, repito o que disse no começo: Fronteiras não é museu, não é apenas um lugar de memória. Fronteiras é sarça ardente. Aqui arde a chama que transformou Moisés em libertador de seu povo e Helder Câmara em bispo nas Fronteiras, ou seja, sem fronteiras. Não é só lugar de visita, é um lugar que nos lembra as coisas verdadeiramente importantes em nossa vida.
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.“