O Ser Humano Bom é um Ser Humano Livre
          A recomendação para assistir o filme cujo título em português talvez seja “Estamos Bem Apesar de sua Falta” (ou alguma coisa parecida com isso) me foi feita com tanta convicção que, antes mesmo de segui-la, saí fazendo a propaganda da fita. Talvez porque me disseram que era filme de chorar. E eu gosto de chorar no cinema. O escurinho acolhe bem as lágrimas, certamente, mas a verdade é que pegar carona numa história que não é minha e derramar-me um pouco para equilibrar melhor o pote sempre tão cheio, me agrada. Ou, quem sabe, a tradução de uma dor alheia, que desperte o sentimento de afinidade me emocione agradavelmente e me permita aliviar o coração. Um pouco de tudo isso, provavelmente…
          Então, quando já ouvira outros bons comentários sobre o filme, lá fui eu. Primeiro dia do ano, sessão da tarde, sozinha, com o cafezinho introdutório do ritual que prezo tanto, passadinha na livraria pra garimpar sebos e paquerar pequenos objetos de desejo e vários pacotinhos de lenço na bolsa, olhos sem rímel para não sair mascarada e uma quase certeza de já saber de que tratava a história.
          De fato, era sobre a trama familiar (como eu deduzira). E foi nesse emaranhado de diferentes linhas de vida que o personagem central, um menino de lindos olhos, foi tecido. E nem podia ser diferente, já que o destino de todos nós tem sempre esse mesmo pano de fundo. Assim, entre adultos e crianças enredados em grandes limitações emocionais, intelectuais e materiais, assisti o pequeno herói ir tendo que dar conta de sua imensa sensibilidade, de sua observação e sua atenção penetrantes, de sua inteligência aguçada e de uma capacidade de amorosidade precocemente amadurecida, que produzia nele uma atitude de comprometimento com cada momento que vivia. Acompanhá-lo, passo a passo, suspiro a suspiro, se não me fez chorar, foi me envolvendo doce e completamente.
          Assim, de tal forma estávamos perto, ali, que, também eu, (como ele) não pude condenar o egoísmo dos que não o enxergavam. Nem pude, tampouco, torcer para que ele simplesmente desse as costas àquele mundo. Andei pelas beiradas dos telhados com ele, quase segurando-o pelas costas, mas, me contendo por saber bem que, quando o abandono é total, é só no limite que a vida parece ter algum sentido. Que, só quando se pode soltar as amarras, tal como na experiência do nascimento ( e, dizem, na da morte) é possível vislumbrar a grandiosidade de se sentir vivo.
          Pois é disso que, a meu ver, trata o filme: do nascimento de um ser humano livre.
          Na saída, pareceu-me ver a confirmação de minha conclusão, no título original. Ali, a palavra italiana “libero” dá ao título um outro sentido: estar bem, mesmo solto. E o último diálogo do menino com seu pai, quando esse lhe propõe a posição de libero no futebol, prenuncia essa libertação.
          – Libero também pode ser bom – o menino consente.
          É um lindo filme para o início do ano. Sorte minha, ter me dado esse presente! Pensar sobre isso estimula a que paremos de avaliar tudo que nos falta e que nos prejudica e consideremos a possibilidade do vôo solitário, que pode nos levar até nosso âmago, onde está o único verdadeiro tesouro que não podemos dispensar.
          Passando adiante a recomendação para assistirem o filme, acrescento: é uma história que mostra o processo de individuação de um ser humano. Processo esse que só se dá na liberdade, mesmo quando esta é conseguida com muito sofrimento, a partir do que pode ter sido vivido como abandono.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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