O sonho é um filme rápido, de curtíssima metragem, que se assiste, ao dormir, sem a necessidade de se deslocar até o cinema ou de ligar a televisão. Não é uma história completa, repassada a olhos abertos por noventa minutos. O sonhador vive o/um fato, nos lances que não se combinam, pessoas que estão numa cena e desaparecem na outra, morte de familiares que nos faz chorar e ao chorar, surge um sufoco, a resultar no acordar e no ficar aliviado, mortos queridos ressuscitados em cenas do cotidiano, a causar, depois uma sensação suave de saudade do calo que doeu ontem, ou, na linguagem de Machado de Assis, o ter saudade das dores velhas. Também cenas de queda, escorrego,  desequilíbrio. O corpo cai, o sonhador se mexe e se acorda.

              Durante muitos anos de vida, fui perseguido por dois sonhos, que se repetiam ora e adiante. Um,  pesadelo, o professor de francês, dos tempos de ginásio, voltando da sepultura, confundido com o chefe político assassinado, acompanhado de pistoleiros, a invadir a cidade, a procura dos alunos que não se destacavam, e, eu, com culpa em cartório, corria, com receio de ser fuzilado, e no correr, me desequilibrava, pois sim, me acordava, o coração acelerado pela ânsia de correr sem sair do lugar.

              Outro, nos bancos da faculdade. Dia de prova e eu não sabia nem que matéria era. Não levava caneta nem lápis. Em outras ocasiões, estava despojado de roupa. A sensação de caminhar em direção ao cadafalso, olhos fechados, danado da vida comigo mesmo porque não anotara o dia da prova e, como aluno mais do que relapso, nada sabia, nada iria responder, candidato em potencial a um zero. Acordava e vinha o alivio porque  não era mais estudante, já tinha mais de vinte anos de formado. O sonho era a dor na consciência, por não ter sido o aluno disciplinado e estudioso dos tempos anteriores.

              Não fica só aí, porque o sonhar é sinônimo do infinito, desconhecendo qualquer limite de temas,  situações e pessoas, além de despertar para o problema do seu significado. Aviso de um ente superior, recado do anjo bom que nos acompanha, advertência que o inconsciente traz à apreciação do consciente? Não sei responder, porque minha ciência não chega a tanto, apesar de meu complexo de psicanalista, como se algum conhecimento de Freud tivesse sido encaixado no meu cérebro, mas, se nada sei, desconfio, e o desconfiar já é sinal de algum saber.

              Os sonhos deveriam ser agradáveis, passeios por bosques sem o perigo das cobras, árvores sombreadas,  ambiente sem besouro algum para futicar a gente, fruteiras sem espinhos, mulheres bonitas de roupas curtas e cabelos soltos, sorvetes variados, lagos bonitos para se apreciar em bancos colocados na sombra, vasos de sucos gelados, sem necessitar de açúcar,  um lugar assim para a gente ter a ideia de como é o paraíso,  onde, depois de mortos, a depender dos pecados, iremos morar, eu, na roupa de  Adão, ao lado de Eva, a espera da provocação da serpente.(23.12.2013)

 Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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