Ana Eliza Machado 15 de novembro de 2018

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Todos os dias eu a ouvia sussurrando. Não a toda hora, pois era bem baixinho, quase inaudível, só escutava mesmo quando não tinha mais nenhum barulho. Podia muito bem ser confundido com o ruído do vento, ou o farfalhar das folhas. Eu só sei que eu ouvia, e nunca prestei muita atenção. Às vezes eu tenho isso mesmo, escutar e ver coisas que não passam de vontades minhas sendo produzidas pela minha cabeça. Então eu a ignorava. E acho que um dia ela ficou brava por isso.

Nesse dia em questão, ela conseguiu me acordar, bem de manhãzinha, quando nem os passarinhos pensavam em sair de seus ninhos e só os corajosos saiam da proteção das cobertas. Eu, exasperada, fui até a janela e gritei para a vozinha: “Então, o que você quer? Se queria me acordar e me tirar da rotina, já conseguiu”.

Mas a vozinha se calou. Não me chamou mais, e eu acabei fechando a janela e caindo no sono. Mas eu passei a sentir falta do sussurro. No terceiro dia, porém já tinha esquecido esses pequenos acontecimentos.

Até que um dia eu ouvi, mais fraquinho que o normal, como alguém que chama mas não sabe ao certo se a pessoa vai virar, e eu lembrei de tudo. Sai correndo ao seu encontro e a vi pela primeira vez.

Ela era alta, bem alta, imponente, e mesmo assim, já velha. Com algumas manchas em seu corpo, e uma parte já quase consumida, sua folhas ainda brilhavam com alguma vigorosidade. Apesar de antiga, a velha árvore agora se mostrava cheia de orgulho de si, e me chamou para sentar.

Sentei em um de seus galhos que mostravam mais conforto e segurança, e fiquei olhando para a rua, e ela começou a conversar comigo.

Até hoje não acho que tenha sido uma conversa, acho que foi só um desabafo. A velha árvore me contou sobre tudo aquilo que ela já tinha visto ali, ao pé daquela rua. As pessoas que passaram por ela, altas, gordas, magras, baixas, felizes, apaixonadas, amarguradas. Me contava de certa prisão que ela presenciara. Contou de um casal apaixonado, que vinham se encontrar todos os dias, sob sua sombra. Me contava sobre um companheiro cachorro, que ia até lá todos os dias, mas hoje não aparecia mais. Contou sobre um amigo que se pendurava em seus braços por todos os dias, mas que depois cresceu e sumiu.Contou tudo o que ela tinha aprendido até aquele dia. Sobre todas as culturas que ela conhecera, mesmo sem poder sair dali. Contou sobre tudo aquilo que ela aprendeu, sem ter que ter aula alguma. E contou como os dias amanheciam mais bonitos, apesar de tudo o que acontecia pelos arredores. Apesar de toda a violência, apesar de toda a ignorância, não tinha um dia que ela não pensava em como era bom estar ali, naquela rua, ao observar aquelas pessoas que, mesmo passando por ali todos os dias, ou mesmo sendo desconhecidos podiam ensinar tanto, apenas com um olhar, apenas com um gesto.

E depois, quando o silêncio tomou conta de sua conversa, eu perguntei porque ela me contava tudo aquilo. Ela respondeu que, apesar de ter passado sua vida inteira ali, parada, só observando, o que ela aprendera valeu a pena, e agora, que ela não tinha mais garantias do dia de amanhã, ela precisava contar para alguém.

Eu ouvi a minha amiga, ouvi e por muitos dias voltei só para sentar em seus galhos e olhar o movimento da rua. Ela já não me contava nada. Vez ou outra apenas fazia um comentário, e eu também não fazia questão de atrapalhar suas reflexões.

Hoje, tiraram a minha árvore dali, não posso mais me sentar ao seu pé ou em seus braços e lembrar daquilo que ela me ensinou, ou observar aquilo que me ensinava cada dia mais. E sinto falta de minha amiga.

Se continuei a ficar ali, parada, vendo a vida passar? Não, não continuei. Se aprendi observando, aprendi vivendo também. Mas isso não significa que minha amiga não teve os maiores sonhos, os maiores ensinamentos, as maiores alegrias plantada ali, ao pé da rua, vendo o mundo mudar.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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