Passeamos tanto nestes jardins de
latas,
papeis,
sacos plásticos,
restos de comida,
papel higiênico usado,
animais mortos e podres,
pedaços de madeiras,
roupas velhas,
lama apodrecida,
cacos de garrafas,
galhos de árvores,
estercos de animais,
excrementos da cidade,
que perdemos a nossa dignidade humana.
Entramos agora no mundo dos bichos:
criaturas-lixo,
criaturas-decomposição,
vermes do lixão,
expúrios da sociedade
da fome e da exclusão.
Nos identificamos com eles
no cheiro,
na cor,
até mesmo no modo de viver e de morrer.
Este solo não nos pertence.
O pão nosso de cada hora
traz o selo da marginalização.
Tem um odor fétido
que penetra em todos os nossos ossos
e peles ressequidas pelo sol ardente.
Não formamos uma classe social.
Não é necessário reconhecer pai, mãe, filho, filha.
Reconhecemos apenas seres imóveis,
apáticos, solidários,
que mesmo se decompondo, rejeitado,
ainda são capazes de doar suas últimas energias.
Vultos intrigantes,
seres das primeiras horas matutinas,
sobreviventes da guerra para exterminar
a pobreza,
a invalidez,
a doença,
a ignorância.
Estes jardins são campos neutros
aonde não chegam
as armas da destruição,
os aparelhos da esterilização,
os testes atômicos,
as drogas para serem testadas nas cobaias,
o isolamento dos improdutivos,
o abandono dos contagiados,
a punição do delinqüente,
o corpo ensangüentado dos violentados,
a revolta dos injustiçados.
Passeamos todos os dias
com as mãos livres,
sem regras de demarcação da terra,
sem um número fixo de ocupantes,
sem horário predeterminado para entrar e sair.
E nos abaixamos milhares de vezes
buscando apenas o que é essencial
para os nossos olhos
e divinizados pelo destino.
(21.06.2004)