Ao término do ano letivo vinha o período de férias escolares. A interrupção das atividades possuía início e fim já marcados no calendário. Aproveitávamos o tempo para descontrair e curtir momentos livres da vida com atividades prazerosas. Dia após dia, os estudantes saíam de casa e em pouco tempo sumia o estresse físico e mental causado pela poluição da mente com tantas informações recebidas nas aulas, a grosso ou em retalhos, de dedicados e amáveis professores, que nos ensinavam a aprender ao longo do último semestre.

A caça com estilingue, além de lícita, era muito difundida entre os adolescentes e praticada mais intensamente nos domingos incluídos dentro das férias. Com uma baladeira na mão, uma mochila no lado esquerdo do tórax contendo pequenas esferas de barro ou de vidro e pedras arredondadas e outra nas costas para as caças abatidas, partíamos para uma aventura de muita descontração e relaxamento. Naquele tempo não havia dificuldades para encontrar preás e pequenas aves como rolinhas, sanhaços, anum-branco, anum-preto e bem-te-vis. Pássaros encantadores não deveriam ser caçados.

A chegada das férias era aguardada com ansiedade e sem obedecer a horários ou correrias, tínhamos tempo de sobra para lazer e recreação. A Solta, uma pequena fazenda para engorda de gado, localizada entre o Campo Grande e a Camadanta, por suas características, era quase sempre o lugar escolhido para tornar nossa alma feliz. Preservava pedaços selvagens da natureza, ocupados por plantas nativas e caças diversas. Para chegarmos até lá, saíamos de casa um pouco antes de o dia amanhecer e fazíamos uma caminhada de quase uma hora e meia por uma estrada de barro muito irregular. Nosso percurso era orientado por cercas de estacas de madeira e arame farpado, além de macambira e vegetações do agreste e da caatinga. Quando caía alguma chuva, as árvores ficavam ainda mais bonitas e água cristalina escoava pelos regos da estrada.

Um pouco antes da cancela, havia uma capelinha de beira de estrada embrulhada no meio da cerca. Teria sido erguida para eternizar “A Virgem” que perdera a vida para manter seu voto de castidade. Todos que passavam por ali faziam o sinal da cruz. Depois de atravessar a cancela chegávamos à sede da fazenda: uma casa centenária de taipa com portas e janelas de madeira, varandas espaçosas e rodeada por um verdadeiro jardim de árvores carregadas de frutas. Pássaros de cores e cantos bonitos esvoaçavam entre elas, tornando o ambiente simples, aconchegante e perfeito para sentirmos o contato com a natureza. Reproduzir e curtir na memória os detalhes da Solta e da trilha longa com apenas pequenos toques da civilização, hoje, molha meus olhos de saudade.

Já estava de volta para casa quando avistei um preá entre as macambiras nas proximidades da capelinha. Pela primeira vez aproximei-me do pequeno santuário e fiquei impressionado com a quantidade e diversidade de objetos ali aglomerados. Faziam parte do patrimônio muletas, óculos, retratos e diversos órgãos do corpo humano talhados em madeira sem grande habilidade. O material simbolizava graças alcançadas por meio de intercessões da “Mulher Virgem”. Uma lenda, transmitida de geração em geração, cheia de mistérios, fantasias e delírios, permanecia viva dentro da comunidade e como se fosse real, desafiava a lógica humana. As pessoas humildes mantêm uma visão ingênua sobre a origem e a cura das doenças e a procura de saúde e boa sorte, abarrotam igrejas, templos e terreiros. Após recolher alguns objetos da capelinha, continuei minha caminhada.

Às escondidas, arrumei em torno do pé esquerdo da cama de minha mãe, um arsenal de trastes compatível com a cultura e nível intelectual dos fieis da capelinha: uma cabeça e uma perna esculpidas em madeira, fitas coloridas, terços, escapulários, moedas sem valor e um óculos. Acendi uma vela e fui jogar bola na praça de Santa Cruz.

Ao retornar, percebi que as pessoas adultas do quarteirão ocupavam a porta e os compartimentos de minha casa. Conversavam entre si assustadas e agitadas e emitiam opiniões diversas. Minha imaginação via o quarto em chamas. Amedrontado, em função de experiências vividas, eu não poderia falar a verdade e assumir a responsabilidade pela tragédia, porque o relho de minha mãe machucaria meu corpo por vários dias. Era mais vantajoso confessar tudo sobre a brincadeira que não deu certo a Padre Artur. Tolerante e generoso, ele perdoaria meus pecados e excluiria meu nome, no rol dos culpados, livrando-me do fogo eterno, a punição prometida e preferida por Deus para os filhos pecadores.

Para aliviar minha angústia não houve incêndio. Os presentes admirados dividiam os olhares entre o “feitiço” e “Mãe Zefa Béu”, primeira rainha universal da África e última escrava das senzalas, agora, viva e forte, no meio de nós, pronta para nos socorrer em qualquer emergência espiritual. “Esta casa está carregada por espíritos malignos. Sinto cheiro de defunto e de cigarro de palha, escuto ruídos de tambores e vejo pessoas aflitas fugindo do satanás à procura de salvação. Cada objeto dessa mandinga tem direção e sentido e, se manifestará com maior poder de destruição nas fases da lua: a cabeça trará loucura; o óculos perda de visão; a perna anuncia paralisia; as moedas sem valor trarão pobreza e o terço e o escapulário danificados, representam perda da fé e rechaço a Deus.” Mãe Zefa Béu, em silêncio, com um castiçal de sete ramificações para velas de poucas candelas, introduzia discreta luminosidade no ambiente e por onde passava salpicava ervas e sal grosso. A seguir com um defumador, a esfumaçar e perfumar, percorreu a casa sete vezes e por fim anunciou: “Amanhã, depois da lua cheia, esta casa e seus moradores estarão purificados e toda maldade terminará para sempre.”

Eu devia ter cerca de doze anos e entretinha-me com leituras irresistíveis sobre turbulência nos aviões, relâmpagos, trovões, geomagnetismo e evolução das espécies. Meu estado de espírito negava-se aceitar, sem questionamentos, as imposições supersticiosas e ficava pasmo com o sucesso das coisas ocultas. Submetido a lengalengas terroristas, ainda muito criança, aprendi a obedecer às leis divinas, mesmo achando ser necessário reformar Deus. Suas regras provocam medo, inibem oposição, restringem a liberdade e os prazeres das pessoas sem ciência.

Numa atitude inesperada e de forma súbita, recolhi os objetos do “feitiço” e os coloquei dentro de uma fronha de travesseiro, demonstrando minha indiferença por magias e bruxarias. Ao tocar naquele material, assustei os presentes. Tornei-me possuído por energia maligna e condenado às desgraças que o “feitiço” abrigava. A pequena multidão apresentava expressão facial de espanto e o olhar de minha mãe revelava uma linguagem amarga. Algemado pelo medo da surra, passei a obedecer às ordens de Zefa Béu: enterrei o “feitiço” no quintal e cobri o lugar com espada de São Jorge, comigo ninguém pode e pimenta. Fiquei de pé, com os braços cruzados sobre o tórax, mantendo em cada mão um galho de arruda, pronto para o exorcismo. Zefa Béu segurou meus ombros, agitava meu corpo para frente e para trás, pincelava minha pele com vassourinha, queimava ervas no cachimbo e soprava em meu corpo a mistura de fumaça e cuspe, com mais força na minha face e meus ouvidos. Senti dificuldades para respirar, tossia muito e os olhos ardidos lacrimejavam sem parar. Cada minuto demorava uma semana, mas, depois de resistir ao ritual, veio a sentença: “não é possível abrigar na mesma alma Deus e o Diabo. Expulso do seu corpo todo e qualquer mal e crio um escudo divino que rodeará seu corpo dia e noite a lhe (sic) proteger por sete anos, sete meses e sete dias, de olho gordo, inveja, cegueira, loucura e espanto do coração”. Zefa Béu era tão poderosa que nenhum mal me ocorreu até hoje. Aju 13/04/2018.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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