Eu tomava café com leite numa caneca, o liquido amarronzado bem mexido para esfriar com rapidez. Nesse momento, meu maior desejo era ter em casa uma geladeira para o liquido esfriar rapidamente. Só que, à época, primeiros anos da década de cinquenta, na minha casa não havia geladeira, o fogão era de lenha, as paredes da cozinha ficando pintadas de fumaça. No café, mamãe colocava o açúcar na quantidade correta, para evitar que ficasse garapa, assim ela dizia, no que completo o quadro.
Quando a primeira geladeira chegou, numa novidade sem igual, eu já não tomava café em caneca. A memória, no aspecto, se fecha num labirinto escuro, tornando incompleta minha relação com o café quente. Os fatos não brotam mais, de maneira que a caneca se perde no tempo, talvez ganhando outra serventia, e, eu, quiçá, já usando uma xícara com pires para o meu café matinal e o da noite.
Reúno o talvez com o quiçá para fincar com mais força a minha desmemoria, na incapacidade de guardar o fato, não indo além de uma brincadeira que papai fazia, me pegando distraído na mesa, para, depois de mexer o seu café, encostar a colher quente em minha mão, a fim de me dar um susto, cena que se repetia sempre e eu, religiosamente, caía.
Quando estes fatos se passaram? Ah, foi a tantos anos nos cafundós dos tempos, que se perderam por aí, deixando poucas imagens, e, uma das quais, um tanto pálida, parecendo que a foto foi tirada com um véu na frente da lente, me coloca na mesa, no momento do jantar, papai se servindo, e mamãe, que concentrava em suas mãos todo o serviço de casa, esposa, mãe e empregada, cortava o pedaço de cuscuz de cada um dos filhos, três exatamente, a gente calado, a esperar a vez, o cuscuz era devorado ora com manteiga, ora com ovos estrelados, ora com leite, e no leite a gente aprenderia, depois, a salpicar de açúcar.
Às vezes não sei se aquele tempo era bom de verdade ou se a idade, hoje, confere ao passado uma visão diferente, fazendo nascer uma saudade disfarçada do vivido como se fosse um empeço que a vida vai colocando para frear um pouco o caminho em direção a morte, a ponto de fazer a mente parar um pouco sua caminhada em direção ao dia de amanhã a fim de saborear fatos que estão perdidos e esquecidos nos umbrais do passado, dos quais, aliás, justiça se faça, nunca antes dei a menor importância, deixando que a areia, tangida pelos ventos, fosse lhes enterrando cada vez mais. Agora, quando me lembro, me frustro, por não reconstruir os ocorridos do antigamente.
Pois bem. Papai há vinte e dois não se encontra mais entre nós. Mamãe, no esplendor dos seus oitenta e oito anos, desafia a vida e a morte de uma cama para uma cadeira, sem consciência de nada, a não ser da dor, sem falar e sem deambular, impossibilitada para o sempre de cortar a fatia de cuscuz para o meu prato. O médico me proibiu tomar café, autorizando substituí-lo pelo descafeinado, que só o aprecio quando está quente, esquecido do desejo de colocar a xícara na geladeira para esfriar o liquido com mais rapidez. (29 de dezembro de 2012)
Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras