“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a fortuna, enfurecida, nos alveja, Ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr-lhes fim?” Shakespeare em Hamlet
Dia desses, deparei-me com um longo vídeo do professor e historiador brasileiro Leandro Karnal, uma fala de mais de sessenta minutos. Sei que assistir à um monólogo de mais de sessenta minutos nos dias de hoje, onde paciência é virtude em falta, parece tarefa árdua, mas não foi. E eu assisti. Duas vezes. Porque, no momento atual, quando todo o tipo de informação nos invade olhos e ouvidos, quase sempre sem pedir licença, é imprescindível que eu encontre espaço para escutar, para ler e reler, aquilo que me desperta consciência, que por um breve momento me faz sentir, mesmo que ilusoriamente, que não estou só em meus mais profundos questionamentos.
A partir de agora muito do que vou escrever vem da minha leitura da leitura de Karnal da leitura de Shakespeare, mas precisamente, Hamlet, e prometo tentar fazê-la bem mais simples e curta (mesmo que uma obra como essa mereça leituras muito mais longas e complexas).
Dissociação na psicologia é um termo usado para falar de processos de inconsciência. Existem várias abordagens para o tema e a minha abordagem é puramente leiga. Então, colocando em simples palavras, o ser-humano dissociado é aquele onde existem grandes vãos entre seu discurso e suas atitudes. O ser-humano dissociado é aquele onde suas partes de “consciência” não conversam entre si. E como somos solitários em nossos próprios processos, existem inúmeros graus e processos dissociativos.
Para obter “consciência” é preciso aprender a combater os nossos processos internos de dissociação, e olhar para si, com tanta verdade, é realmente um trabalho árduo. E Karnal nos lembra que fazer esse trabalho intenso de obter consciência sobre seus atos vai muito longe do espírito de autoajuda que diz “aceite-se e você será feliz”, é muito mais grave que isso, é “tente descobrir vagamente quem você é, então você não será feliz, mas sua consciência vai pelo menos fazer com que você não seja falso, vazio e comum”.
O ser humano integralizado é o contrário do ser humano dissociado, e assim como a dissociação, a integralização também existe em diversos graus e formatos. A integralização é o trabalho que fazemos para diminuir o espaço que existe entre nossos discursos e nossas ações. E, apesar de ser um processo bem distinto para cada um, existem algumas maneiras de percebê-la. O meu termômetro para medir consciência (a minha principalmente) é a quantidade de desculpas que nós nos damos e damos aos outros, quanto mais desculpas, parece-me que mais dissociados estamos. Assumir a responsabilidade por nossos atos falhos ou por nossas escolhas é um grande passo no processo de consciência.
A pergunta mais famosa de Hamlet, que vem sendo repetida por quatro séculos e que muitos, inclusive eu, interpretam de maneira bem simplista ou até equivocada (começando por sua tradução para o português), “to be or not to be?” (“”ser ou não ser” ou “estar ou não estar”?), parece simples, mas o que muitos não se deram conta é que essa pergunta nos remete diretamente para a complexidade do processo de consciência em si. O príncipe Hamlet é extremamente consciente, e sozinho em sua consciência ele se indaga: “ – Quando é que as pessoas vão parar de me dizer o que deve ser dito para me dizer o que as coisas realmente são?”.
Entendo que essa decisão entre o “ser ou não ser”, não é tão difícil de fazer, mas ela abre portas para o desconhecido mundo do autoconhecimento e adentrar nesse mundo sim, é tarefa difícil. A verdade é que muitas vezes optamos por não ser, porque é extremamente doloroso e solitário olhar para o vazio que existe dentro de nós mesmos. E olhá-lo demanda de nós (muita) vontade.
Vontade de olhar para as coisas como elas realmente são. Vontade de enfrentar nossos próprios medos e demônios. Vontade de não viver uma vida que Karnal chama de “enquadrada” e Shakespeare chama de “encenada”. Vontade de perceber como somos insignificantes e solitários em nossa consciência. Que temos sempre tantas perguntas, mas que muitas ficarão sem respostas.
Hamlet nos lembra que esse “caminho das pedras” para ser ou estar é simples (e ainda assim complexo): basta que comecemos a estar presentes naquilo que dizemos. Quando fazemos isso, estamos aos poucos saindo dos nossos processos de inconsciência, de dissociação e começamos a criar mais integridade, coerência, consciência.
Segundo a leitura de Karnal, o que Hamlet parece dialogar conosco é que: – E se as dores que nós inventamos, dores financeiras, dores físicas, dores de problemas familiares fossem o disfarce de uma grande dor maior? A dor que nós não conseguimos nominar, por isso estabelecemos dores laterais, por isso estabelecemos que eu esteja bem ou não naquele momento ou dia. Hamlet diz exatamente que essa dor nasce do fato de que todos naquela peça, em quase quatro mil e quinhentos versos, estão dizendo a ele o que ele deve ou não deve ouvir e não exatamente o que as coisas são. Hamlet objetivamente está olhando para o mundo e dizendo:
“– Quando é que haverá alguém que vai me dizer o que as coisas são? Quando alguém parará de dizer o que deve ser dito? Quando alguém parará de colocar fantasias, de beber muito (ele reclama da bebedeira da corte), de disfarçar sua dor? Quando alguém começará a estar presente naquilo que fala? Quando as pessoas começarão a ser e deixarão de não ser?”
As últimas palavras de Hamlet nos trazem a principal reflexão que surge de toda a peça: depois que Hamlet disse tudo que deveria ser dito, o que restou foi silêncio. Quando todo esse barulho que faço para não me enfrentar, quando eu decidir acabar com toda a distração ao meu redor, quando eu parar de me anestesiar e resolver enfim olhar para dentro de si. Quando todos que conheço se forem, o que restará? Vazio. Silêncio. Sim, o resto é silêncio.
Obs: Imagem enviada pela autora.