Nosso anti-herói precisou voltar à terra natal – Ranzincity — e aproveitou para fazer uma visita a velhos amigos de um monastério. Na ocasião, terminou por hospedar-se em retiro compulsório. Uma semana depois, escreve uma carta a uma grande amiga, mas que provavelmente ninguém vai usar como Primeira Leitura na missa de domingo:
Prezada Bucetildes,
Cá estou em Santarém, também conhecida como Ranzincity, onde me pariram há dez mil anos. Um fim de mundo a oeste do Pará, banhado pelo Rio Amazonas e pelo Rio Tapajós, cercado de florestas e barro, onde provavelmente Judas perdeu as meias. Porque as botas já ficaram longe.
Há 15 anos que não retornava por estas bandas. As pessoas dizem que muita coisa mudou em 15 anos. Acho que ficou tudo igual. Felizmente, já chegou Internet por aqui. Mas só funciona de manhã cedo (antes das 9h) ou tarde da noite (depois das 22h).
Estou hospedado no seminário onde o Ranzinzão passou boa parte da vida dele. Pois é, Bucetildes, sabe aquele jeitão de padre que você vive dizendo que carrego nas costas? Agora está explicado: é coisa de família…
O monastério daqui é um casarão enorme cheio de padres e seminaristas iludidos. Coitados. Bucetildes, antes que você pergunte, aqui não tem criancinhas.
As únicas presenças femininas são as imagens da Virgem Maria espalhadas pelos corredores. Ou seja, não tem mulher nem para limpar a vista, nem para suspirar. Estou subindo pelas paredes. Acho que estou virando ateu.
O local fica longe da cidade e, mesmo que fosse perto, eu não sei mais andar por esta metrópole. Mesmo que soubesse, não sei se teria coragem. Andar nas ruas de Ranzincity é o mesmo que andar em brasa. Lembra quando fomos visitar o Piauí? Pois é, aqui também dá para fritar ovo na calçada. Uma urucubaca só.
Nesta época do ano, não chove e não venta. Logo, nosso melhor amigo é o ventilador turbinado. A gente só não leva ele na hora do banho porque pode dar um curto-circuito e, nesse caso, ficar sem ventilador seria bem pior.
Por falar em banho, aqui o ideal é não se enxugar depois do banho, para aproveitar os poucos minutos refrescantes. Se você se enxugar, é só colocar o pé para fora do banheiro que já começa a suar novamente e, em vinte minutos, vai querer tomar outro. E logo eu, rechonchudo do jeito que estou, passo o dia suando que nem uma vaca prenha.
Como nem tudo são espinhas, aqui tem Cerpa bem gelada e algumas garrafas de 51. O problema é que não posso beber. Nesse calor, se eu virar uma cerveja vou ter que passar o dia no refeitório e zerar todo o estoque do monastério. Os padres podem não gostar e aí vou ficar sem Cerpa, sem comida, e sem quarto. E tomar 51 é suicídio no calor. Mas aqui o pessoal toma 51 com feijão… recheado de pimenta do reino. Muita pimenta do reino. Deve ser para pagar os pecados. De umas quatro gerações.
Os dias se resumem a ler bastante e a escrever mais ainda. Não dá para ler jornais, porque a Internet é precária e lenta; e na esquina só vende jornal local, que a turma compra para embrulhar peixe – aliás, tenho observado que essa parece ser a mais importante função social dos jornais, não sei se você sabe, minha cara Bucetildes. Bendita vida esta que fui escolher de escrevedor.
O bom daqui é que a vida não tem preocupações. Aliás, só tem uma: cuidar do ventilador turbinado como se fosse um filho.
Vamos comer peixe na beira do rio e não existe essa modernidade de garfo e faca. É uma colher e uma mão. A colher já é considerada luxo. Usa-se o dedão para empurrar a comida na colher e está tudo resolvido, mas isso é assim em todo interior e você deve saber. Eu já lembrava dos meus tempos de criança, então não perdi a prática. Modéstia à parte, até que continuo relativamente hábil com os dedinhos… mas isso acho que você também já sabe, ó cara Bucetildes.
Aqui tudo gira em torno dos rios. A alimentação básica é peixe, peixe, mais peixe, e um pouco mais de peixe. Sempre fresquinho e natural. Às vezes, o bicho ainda está se batendo quando jogam na brasa e temperam com sal e limão. Nem se comparam com nossos peixes de panela da manguetown. O acompanhamento padrão é arroz e farinha. Muita farinha. Farinha com Cerpa, então, é uma mistura supimpa.
Bucetildes, estou desesperado. Ainda tenho dois dias de retiro. Já escrevi tantas abobrinhas diferentes que nem tenho mais idéias. As sobras que faltavam, o calor fritou. Acho que vou deletar os arquivos para escrever tudo de novo. O livro que eu trouxe, de 600 páginas, já acabou. Vou tentar pedir emprestado algum aos padres, mas receio que eles só tenham bíblias e livros infantis.
Fui tentar assistir a uma missa, depois de uns cinco anos sem pisar em igreja. Cara Bucetildes, confesso que fui mesmo para ver se encontrava alguma noviça. Com todo respeito, é claro, mas qualquer presença feminina, mesmo que distante, já seria o suficiente para eu ganhar o dia e voltar a acreditar no Senhor.
Mas não havia noviças, nem sequer freiras. Inventei uma dor de barriga para voltar ao quarto e ficar ao lado do meu filho, digo, do ventilador. Acho que vou continuar ateu enquanto estiver por aqui. Oh Bucetildes, você pode me mandar uma foto sua pela Internet?
Quando voltar à manguetown, não preciso nem dizer qual é a primeira coisa que vou fazer. Mas, a segunda, eu posso dizer: com este nosso verão escaldante, fiquei sabendo que estão precisando de jornalistas com inglês razoável para vender cachorro-quente aos turistas em Porto de Galinhas. Vou me candidatar. Ao menos ficarei perto dos biquínis.
Para terminar, uma novidade: diante de tanto ócio aqui no monastério, aproveitei o tempo de reflexão e escrevi uma bíblia. Pois é, Bucetildes… uma bíblia. Quem viver (e clicar), verá.
Um abraço do,
–Frei Ranzinza.
28.01.2003