Patricia Tenório 15 de fevereiro de 2018

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Saiu de casa bem cedo. Deixou a irmã e a mãe viúva dormindo. Pensou que hoje seria um dia bom.

Atravessou a avenida Boa Viagem com o carrinho cheio de guarda-sóis e cadeiras de praia. A maré cheia. A areia fininha.

Começou a armar um guarda-sol e duas cadeiras a cada metro no espaço que para si era reservado. O rapaz da barraquinha de côco já lhe deu bom dia e aguardavam os turistas chegarem, escolherem um lugar, divertirem-se com a festa do verão em cor.

Eram duas meninas. Clara e Letícia. Uma de nove anos; a outra, cinco. Brincavam na beira do mar, a mãe lia um livro de poemas. Alberto Caeiro e O guardador de rebanhos.

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo…

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,

Porque sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura…[1]

O rapaz da barraquinha de côco lhe chamou, e foram juntos atender a pequena família. A mãe sentou, pediu uma água de côco, e ficou refestelando-se com o verão em cor. As meninas brincando na beira do mar, pareciam saber as noções de uma boa natação.

Pareciam.

Ouviu o grito com os nomes e virou-se advinhando o perigo. Letícia, a mais nova, sendo arrastada pela correnteza, e Clara ia no mesmo caminho. Buscou com os olhos um salva-vidas, mas não havia ninguém lá. Resolveu ir por conta própria e tentar salvar as criancinhas.

Quando ouviu o segundo grito, os pés, as pernas, os braços começavam a adormecer, como se não fosse mais acordar, como se houvesse engolido toda a água do mundo, e, as últimas coisas que viu do mundo foram as duas menininhas chorando e sendo retiradas do mar pelo par de salva-vidas.

E, lá longe, e mais longe, o amigo da barraquinha de côco com as mãos para cima, praguejando pelo ar.

(baseado em fatos reais)

(“O dia em que eu engoli o mundo”, Patricia Gonçalves Tenório, 20/01/2018, 20h02)

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Patricia Gonçalves Tenório (Recife/PE, 1969) escreve prosa e poesia desde 2004 e tem onze livros publicados, com premiações no Brasil e no exterior, entre elas, Melhor Romance Estrangeiro (2008) por As joaninhas não mentem, e Primo Premio Assoluto (2017) por A menina do olho verde, ambos pela Accademia Internazionale Il Convivio (Itália); Prêmio Vânia Souto Carvalho (2012) da Academia Pernambucana de Letras (PE) por Como se Ícaro falasse, e Prêmio Marly Mota (2013) da União Brasileira dos Escritores (RJ) pelo conjunto da obra. Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE, atualmente é doutoranda em Escrita Criativa na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

(1) PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos. In Poesia completa de Alberto Caeiro. Edição: Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 27.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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