Maria Clara Lucchetti Bingemer 1 de fevereiro de 2018

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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A solidão entendida como ausência de relação, de companhia, de interlocução, pode ser algo extremamente doloroso.  Seu sinônimo é o isolamento. Há o risco de levar à depressão e até mesmo ao suicídio. Assim começava uma música de Vinicius de Moraes, “Um homem chamado Alfredo”.  “O meu vizinho do lado se matou de solidão…”

 Alfredo tinha apenas a companhia de um papagaio e um gato de estimação e matou-se inalando gás de botijão. Dizia-se cansado de viver.  Cansado talvez de não ter ninguém com quem falar, uma companhia, “uma vez para amar; uma mão para dar; um olhar”.  Cansado de ser invisível e sua existência não importar a rigorosamente ninguém.

 A solidão é o mal maior da nossa sociedade.  Ela pode acontecer em um velho quarto onde, desesperado se abre o bujão de gás.  Ou também pode manifestar-se em meio às multidões que passam e não veem, não escutam, não se dão conta de que ali está alguém com sentimentos, desejos, em suma, um semelhante, uma pessoa.

Por sermos seres relacionais, que só existem com a presença e a interação com o outro, a solidão acaba por matar-nos mais dia menos dia.  Pode fazê-lo prematura ou  repentinamente.  E é assim que a primeira ministra britânica, ao constatar que o orgulhoso e desenvolvido Reino Unido invertia a corrida mundial pela longevidade e apresentava índices de mortalidade sempre mais prematura de seus cidadãos, criou o Ministério da Solidão.

 Um ministério? – perguntaremos nós. Pois é necessário um ministério para cuidar do sintoma da solidão, sim, senhores.  Sobretudo porque as maiores vítimas desta mortal síndrome são os idosos. E isso significa pessoas que já não contam no mapa da produtividade, da beleza e da atividade.  Pessoas que têm suas atividades físicas e energias limitadas.  Pessoas que – seguindo a poesia de Vinicius –  andam com os olhos no chão, sempre pedindo perdão.  Perdão por existir e perturbar e incomodar.  Pessoas que não se veem porque são quase nada.  E que, portanto, não têm sequer energia para gritar e pedir socorro quando sentem que o abismo da depressão se abre sob seus pés.

 Esse grupo de pessoas está se avolumando nas sociedades modernas e desenvolvidas.  Sobretudo porque a vida é mais longa do que antes e não se morre mais na plenitude e flor da idade, quando se faz falta e a partida é chorada.  Os solitários de hoje são em sua grande maioria idosos, órfãos de filhos vivos,  não mais procurados pela família.  Muitas vezes porque os filhos e netos moram longe, em outra cidade ou país e têm muita dificuldade geográfica e financeira para visitá-los.  Ou também porque atrapalham a ânsia de divertimento e de consumo que predomina na vida das gerações mais novas.

Quem vai querer um velho ou uma velha atrapalhando seu fim de semana, feito de correrias, festas, programas sem fim?  E o velho fica em casa.  A casa por sua vez é pequena e sem muitos recursos.  Onde estão os amigos do ancião?  Doentes ou mortos em boa parte.  Onde os recursos de diversão?  Senhores, as aposentadorias como sabemos são parcas, no Brasil ou no Reino Unido.  Mal dá para comprar comida e remédios.  Com a idade e a progressão exponencial das mazelas, a farmácia particular cresce e consome muito dinheiro.

 Os filhos ajudam?  Alguns provavelmente.  Mas também sem exagerar.  Senão, como vão levar as crianças à Disney, passear ou esquiar na Europa, beber whisky, tomar vinho e ir a restaurantes melhores?  E assim o final da vida de muitos idosos é marcado pela presença do Alzheimer, pelo asilo, ou pela solidão da casa com a presença de um cuidador nem sempre paciente ou experiente.  A solidão se aprofunda com a diminuição das energias, o desaparecimento dos círculos mais próximos de conhecidos ou amigos.  Entre nós há ainda o agravante de que a violência e a insegurança impedem que a vizinhança seja mais cultivada. Os vizinhos cuidam cada um de sua vida, sua família, suas coisas.

Alguns solitários se apegam a animais.  Alfredo tinha um papagaio e um gato de estimação. Quando morre o companheiro de bico ou quatro patas, a dor é equivalente à perda de um parente.  E a solidão se aprofunda. Idoso provavelmente, mas em todo caso isolado de qualquer círculo significativo de relacionamento, o solitário não tem com quem falar, partilhar experiências, dividir a vida.  E se sente descartado por uma sociedade que não previu um lugar para ele, por uma família que progressivamente o abandona, por uma vida em meio a pessoas que passam e “mal o adivinham’…

O Reino Unido computa hoje nove milhões de pessoas nessas condições de absoluta solidão.  Aqui não conheço estatísticas sobre isto. Mas certamente nossas cifras devem ser altas e marcantes. Uma amiga estrangeira que vivia no Rio há várias décadas e amava a cidade, o país, o estilo de vida, comunicou-me que ia voltar ao seu país natal porque chegara à conclusão de que se morresse, só iriam perceber vários dias depois devido ao cheiro.

O Ministério da Solidão se ocupará destas coisas, seguramente.  Tratará de abrir caminhos e criar meios para que os solitários encontrem companhia, momentos comunitários, estímulo para reunir-se com outros. Elaborará políticas públicas que criem projetos e linhas de ação para a dignidade dos idosos e de outros solitários.  Enfim, tratará de encontrar meios para que uma faixa significativa da população não se sinta à margem da vida e empurrada lenta e inexoravelmente para o isolamento e a morte.

Esperemos que esse ministério não mude apenas fatos pontuais, mas também mentalidades.  Pois na medida em que aprendermos a povoar a solidão alheia, nos tornaremos mais humanos. Solitários não, mas solidários somos chamados a ser.  E isso implica prestar atenção ao outro, à sua tristeza e à sua dor, a seus desejos e sua solidão.  Olhar com carinho e compaixão aquele a quem ninguém vê, que é considerado “quase nada” como diz o poetinha Vinicius.  Inclui-lo e ouvi-lo, conviver com ele ou ela, tratá-lo como gente.  Para que a solidão não se avolume de tal modo que se torne uma doença incurável e letal.

Se contribuirmos efetivamente para minimizar a solidão ao nosso redor, talvez quando chegue a nossa vez de ficarmos sozinhos, poderemos viver essa experiência e fazer essa travessia com menos dificuldade e mais alegria.

Obs: A teóloga é autora Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.

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