IV – O Nome “Sertão”
Quanto à origem do nome sertão, nada sabiam os vaqueiros com os quais conversei. Bem esperava tal resultado, pois tal nome, vale ainda dizer, deixou tanto Cascudo quanto Morisot indecisos e, mais que isso, irresolutos quanto à sua origem. Bem me parece ser possível, portanto, que a história do nome muito poucos a conheçam. É bem verdade que, no caso em questão, nem eu – confesso –, a história do nome “sertão”, domino-a no conhecimento ou na memória, mesmo que a imaginação possa satisfazer-me a lacuna.
É ela, a arte de imaginar, que, em grande parte, possibilitará o discorrimento a respeito da contenda, fazendo com que fique não apenas o nome de Pau dos Ferros, mas também o de Sertão, com suas devidas explicações. O fato é que pouco se sabe o que haveremos nós, humanos, de pagar à imaginação em retribuição à sua ajuda, que tanto nos é providencial na falta das outras faculdades da mente. Faculdades mentais, por suas vezes, não são rios facilmente transitáveis. Muito ao contrário, no propósito da materialização da imaginação, há de se ter algo mais que a suporte ou, ainda, um atalho para a sua realização. Tal atalho é que pode ser chamado de pirueta do argumento. Desta feita, usemos um pouco de lógica e imaginativa.
Primeiramente, havemos de olhar para o nome “sertão”, depois, identificar as suas características. De forma inevitável, vê-se, forte, ao final da palavra, um “ão” inquietador. Ora, o “ão” de sertão não parece ser semelhante ao “ão” de “acessão”, de “pão”, de “feijão”, que são parte integrante do nome; mas, ao contrário, é sabido que o “ão”, no caso de “sertão”, é sufixo nominal, que, neste contexto, significa amplificação, acréscimo, aumento. Sertão, portanto, graças ao uso de tal sufixo, deve ser aumentativo de outra palavra. Se for tal o caso, assim como “facão” é aumentativo de “faca”, “sertão” o será de “serto”. Mas, vem imediatamente a dúvida concernente ao que quer dizer a palavra “serto”. Mais que isso, somada ao quesito, aparece a constatação de que essa palavra não existe, ao que parece, em nosso vernáculo.
Antes de ser tal constatação um desestímulo, há de ser alimento para uma outra cabriola do pensamento. Vê tu que “serto”, por não existir nos dicionários, deve ser contração de outra palavra. Basta-nos agora, portanto, a simples busca das palavras em português cuja contração poderia se resumir em tal vocábulo. Vê que, até onde sei e posso me lembrar, cinco são as palavras básicas desta natureza. Ei-las, monotonamente, na ordem alfabética: asserto, conserto, deserto, diserto e, por fim, inserto. Mas, como “sertão” é nome de região – um topônimo –, havemos de ver quais das referidas palavras condizem com tal característica ou melhor a ela se adaptam.
Vê-se logo, então, que das cinco, apenas uma pode ser, pelo menos em primeiro momento, atribuída a um lugar, que é, como se pode facilmente coligir, deserto. Assim sendo, por ser apenas esta a palavra que tem na forma a possibilidade direta da adjetivação de um local, havemos de escolhê-la, privilegiá-la na contextura de nomeação de uma região. Pronto, com um quê de imaginativa e dois ou três de lógica e pressa, excluíram-se as outras quatro palavras e resolveu-se o dilema: “sertão” vem de “deserto” e, por estar no aumentativo a palavra, aumenta-se a ideia: “sertão” é proveniente de de-sertão, desertão, grande deserto. Vale dizer que Cascudo, no seu Dicionário, vislumbra tal possibilidade, embora não a delongue
À parte isso, ainda resta uma reflexão, fruto das concatenações semânticas: deserto, por definição da própria palavra – do latim desertu –, deveria ser o mais ermo e desabitado dos lugares. Entretanto, este me pareceria, pelo menos à primeira vista, não ser bem o caso. Com efeito, nas andanças pelos sertões rio-grandenses-do-norte – como bem muitos já me disseram –, veem-se homens fortalecidos pelas vicissitudes típicas da vida e animais de maior porte perambulando à vontade de seus desgastados arreios ou, principalmente, de suas enormes apetências. Jumentos, vacas e ovelhas são os mais corriqueiros. Ora, a constatação da qual se fala corrói a história do nome “sertão” antes sugerida. Como pode provir de “deserto” um lugar que é habitado? Ei-la, forte como dura rocha, a pergunta que assola.
Triste fracasso, quiçá, dos que preferem a livre imaginação à cuidadosa investigação para preenchimento de lacunas. Mas, se és um desses, isto é, se foste convencido a preferir a investigação à imaginação, tenta, por meio das tuas possibilidades, pelo menos compreender o que aconteceu comigo naquelas andanças. Tal compreensão, asseguro-te, há de esclarecer o paradoxo que antes to foi apresentado, assim como, o acontecimento insólito, excepcional, que em seu tempo neste texto o narrarei.
V – O Nome “Caatinga”
Antes de me referir a tal fato, nada obstante, hei de voltar ao enredo. Caso te lembres, ainda estava a caminho do sertão e, incrivelmente, a natureza começou a se me apresentar em oposição às minhas expectativas. O problema é que o preconceito, que a uns e outros nos é sempre confortável, imprimia nas minhas expectativas a ideia de um sertão árido, sequíssimo, como tudo o que é estéril. O que eu esperava ver era o que há sugerido na etimologia de “caatinga”, palavra que nomeia a zona cuja vegetação tem o mesmo nome.
Caatinga, cuja primeira parte, “caá”, significa mato ou folha, seria, de acordo com o tupi e com as semânticas que guardamos, um mato que, de tão seco, chega mesmo a ser quase alvo. De fato, “tinga”, em tupi, é “branco”, que dá origem, por exemplo, a “Tabatinga”, topônimo que significa “barro branco”. A ideia é a de que o índio, no início, se referia à vegetação pela expressão correspondente a “mato branco” – “caatinga” –, engrenando, desta forma, um esforço figurativo de ver no que está seco o que é alvo.
Há uma outra hipótese. Para as mentes mais exigentes ou menos dadas às metáforas, pode-se sugerir que a palavra “caatinga” se origina não do tropo “mato branco”, mas sim da contração de “caatininga”, que, em tupi, é literalmente “folha seca”. De acordo com esta ideia, o índio se referia ao mato com base na forma como ele se lhe parecia: “seco”, ou seja, “tininga”. O termo “caatinga”, no lugar de “caatininga”, teria sido pacificado no lento processo em que a língua portuguesa passou a ser alimentada pelos termos em tupi. O colonizador português, por algum tipo de corruptela, passou a chamar de “caatinga” o que o índio chamava de “caatininga”. Como o primeiro termo não representa um absurdo figurativo no que diz respeito ao que representa, que é o mato seco que parece branco, o próprio índio passou a adotar a nova nomenclatura e ela se cristalizou na linguagem.
VI – O Sertão Poético
As etimologias todos do mundo somam pouco quando os olhos vêem outro mundo. Assim foi: na viagem, vi mato verde, nem seco, sem branco. Mesmo quando ainda estava no meio do caminho, digo-te que, no âmbito das referidas etimologias é que eu esperava ver, ainda na região Seridó – espécie de sertão médio da Paraíba e do Rio Grande do Norte –, mesmo bem antes da verdadeira caatinga, a sequidão que se me apresentaria com maior veemência a cada quilômetro rodado. O sertão, contudo, repito, estava verde… Corrijo-me: verdíssimo! A chuva, por aquelas bandas, é como um beijo na face da terra e a resposta desta, como o sorriso que se segue ao beijo. Mas, mesmo assim, ainda não me saía da mente a ideia da sequidão sertaneja. Considerei que a referida secura não estivesse na vegetação nem no povo naquele exato momento, mas sim impresso em suas almas. Era uma questão susceptível de maiores análises.
Obs: A PARTE I foi postada no dia 14 de setembro.