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VII – O Vaqueiro Adligeno

Na continuação da viagem, já havia passado por muitos rios e serras. Conseguira, de pouco, deixar para trás o Médio Oeste e foi isso, que me deixava ainda mais oestemente fortalecido. Por fim e ao cabo de algo como cinco horas, chegamos ao Alto Oeste: era a Fazenda Morena, nos arredores de Pau dos Ferros. Era tardinha – tardinhas são momentos adequados para se chegar a novos lugares –; e logo tratei, ainda na cancela, de perguntar a um dos trabalhadores sobre o Sr. Teófilo Diógenes, dono do referido lugar.

O vaqueiro estava em sua casa, bem na entrada da fazenda, olhando-me com desconfiança. Desci do carro e, em frente à porta da casa, vi, preso em um mourão sem uso, mas feito para amarrar bicho brabo, uma plaqueta azul e gasta, na qual constava o seguinte ditame: “se tá chegando, Deus te abençoe. Se já tá indo, Deus te acompanhe.” O que é certo é que havia ali um quê de cordialidade e outro de alguma religiosidade. Esta característica, em um esforço maior que o da mensagem da plaqueta, não deve ser entendida no sentido comum da palavra. Religiosidade, aqui, concerne ao amor tanto ao sagrado quanto ao profano; ou, em termos mais oblíquos, pode-se dizer que religiosidade traduz-se, em regra, na inviolabilidade de certos sentidos da vida, que estão presentes no sertão. Veja-se o vaqueiro Adligeno, que, sendo sertanejo, não possuí um código moral que estabeleça muitas das valorações típicas do povo do litoral. Ele age assim e assim, simplesmente. Esta é sua sina e sua vitória; sua nobreza e sua desgraça; sua vida e sua morte.

No que concerne à estrutura física do vaqueiro Adligeno – e, em boa, porém arriscada, indução, à estrutura do povo do alto sertão –, pode-se dizer que ele é um exemplar original, digamos, mas não tão genuíno, pois é formado da mistura de muitas gerações dos antigos Tarairiu e Kariri, mas modificado, aqui e ali, por poucas gotas de sangues europeus e africanos. Em resumo, Adligeno tinha o corpo forte; a estatura média, senão razoavelmente elevada; a cútis avermelhada; a cabeça mais comprida que larga – aproximadamente na proporção de cinco partes contra quatro, característica dos dolicocéfalos –; os olhos escuros, mas não escuríssimos; o jeito sério e, agora sim, dá-se vazão ao superlativo: seriíssimo.

Quanto à inteligência, ele a possui de forma quase instintiva – é em que, em regra, consiste o intelecto do sertanejo –; no que concerne à inibição, tem-na com veemência: começa por falar pouco com quem não conhece, de sorte que apenas com a confiança estabelecida é que passa à desenvoltura a prosa ou, mais que isso, em tal estágio, Adligeno bem que se confessa. É, portanto, neste último ponto, a personificação de um paradoxo, um homem das extremidades, do inconciliável, do contraditório… Assim, pelo menos, pareceu-me aquele sertanejo.

Mas ele, o sertanejo, quando personagem, não serve para ser gente. É, em realidade, um gigantesco demônio-homem, que agonia irresistivelmente a mente do escritor até que este concorde em escrever as histórias do sertão. De histórias, é fato, está o demônio-homem daquelas bandas repleto, pois são todos da estirpe dele, na qualidade de bons sertanejos, como bem notou Guimarães Rosa, grandes fabulistas. São também, nada obstante, sérios e resolutos: penso que acreditam em suas narrações e lendas com a força mais veemente que se pode imaginar e é isso que impressiona e fascina.

Ante à fascinação, resolvi, por fim, dirigir-me ao vaqueiro. Sendo assim, ei-lo, rápido e sem os sinais estranhos das sobrancelhas do meu interlocutor, o diálogo travado:

“Boa Tarde… O Sr. Diógenes está?” – indaguei.
“Tava. Saiu nestante” – retrucou como se falasse para dentro, voltando, logo depois, o olhar para baixo.
“Ah, bom… Olhe, sou amigo dele… Posso entrar para esperá-lo?”
“(…)!” – comunicou-se com a garganta, nem precisou abrir a boca. No que concerne ao significado, falou “(…)” como resposta ou, pelo menos, foi assim que eu o tomei. O fato é que não soube dar maiores semânticas ao símbolo de natureza estranha e quase, de tão misterioso, indecifrável. Ele abriu a cancela e eu segui a estrada até a casa-grande de onde uns já avistavam, com ar de desconfiança, o meu rosto: parecido nos traços com os ancestrais ali conhecidos, mas ainda não familiar totalmente.

VIII – Chegada à Casa-grande

Ao chegar lá, à casa-grande, fomos, apesar da desconfiança inicial de uns, extremamente bem recebidos. A Sra. Fátima, esposa do Sr. Diógenes, foi-me gentilíssima e, logo após uma prosa inicial, mas cujo convencionalismo não me estimula a narrar, chegou o Seu Chico, velho vaqueiro da fazenda. Ele me cumprimentou e eu, retribuindo o gesto e no esforço da entrosagem, engatei um diálogo:

“Mas o sertão está verde… Nem sempre está assim, não é mesmo?”
“É…” – ensaiou então uma obliquidade no sorriso e prroseguiu: – “mas têm duas coisa aqui que é verde sempre.” – reprimiu o sorriso para, ao que parece, dá maior seriedade à fala.
“E quais são?” – perguntei.
“Olhe, mesmo na seca, pano de sinuca e pena de papagaio tá sempre verde, verde…” – atrelou então uma risada… Todos os demais, que no alpendre também se encontravam, riram… A risada do Seu Chico, apesar da sua idade, era infantil, inocente, ingênua. Ri também e, na mesma bitola, ri com a sinceridade dos pacíficos e desarmados.

Depois, pensei sobre quantas pessoas riem assim, livremente, como faz a natureza, os trovões, o sol… Não obtive a resposta… O ar, contudo, ficou meio triste após a risada. Isso não se deu por culpa dos vaqueiros, mas de minhas elucubrações reflexivas, as quais são sempre meio tristes. Foi aí que voltei a considerar a natureza e a beleza do mundo, assim como se estivesse lendo A Arte de Ser Feliz de Cecília Meireles, só que não no papel, mas na realidade, nas plantas, no vento Nordeste, que havia como que um relógio não tão pontual, de chegar no intervalo daquele par de horas. É impressionante como nos é forte os movimentos da terra onde se enterraram nossos ancestrais. É como se a matéria inerte e decomposta deles se tornasse os efeitos do solo: suas plantas e cheiros. Estes, ao alcançarem nossas percepções, emocionam-nos como se estivéssemos tendo com os velhos avós, bisavós e outros mais, que choram por nós, a cada manhã, mesmo na seca, nos orvalhos das oiticicas.

IX – Os Orvalhos do Sertão


Os orvalhos do sertão são, de fato, as lágrimas da natureza. Eles, contudo, não nascem de sua tristeza, como às vezes nascem das dos homens o pranto consolador; mas, ao contrário, o orvalho do sertão é choro de alegria que, em uma acepção mitológica, promove o mundo ao se personificar na deusa Aurora. Explico: na guerra de Troia – de acordo com o Etiopida, com as Ilias Parua e, principalmente, com o poema Pólemoz de Hyogrucylos –, o filho da deusa Aurora com Titono, chamado Mémnon, matou Antíloco, filho da deusa Tétis. Antíloco, que entrara na batalha para salvar a vida do pai, Nestor, poderia ter, no futuro, a morte vingada… Não foi o que passou pelas noções de Mémnon naquele momento; sentiu-se – pode-se até dizer – não menos seguro que feliz: havia, enfim, matado o inimigo.

É fato que há os que, como Mémnon, pensam que a morte inibe a vingança do defunto, que desacreditam em quaisquer represálias de cadáveres, que gritam que os corpos inertes não causam mais problemas. É bem verdade que mortui non mordent – os mortos não mordem –, mas, por outro lado, outros podem morder em nome deles. Eis o que pode haver de mais sincero no homem: a manutenção da fidelidade e amizade a outro mesmo depois da morte deste. Nada mais sincero do que ser fiel a um morto. Informo-te, prezado amante das mitologias, que foi o que aconteceu. A morte de Antíloco despertou em seu fiel amigo, Aquiles, a vontade de vingança; haveria de acabar com aquele que destruiu a vida do amigo; o projeto, enfim, foi levado adiante. Aquiles encontra Mémnon no campo de batalha e assim se dá o confronto entre os filhos de deusas. Elas, as mitológicas deusas Tétis e Aurora, em desespero, vão a Zeus, no intuito preservar a vida dos filhos. Triste façanha de todos os acasos: neste ínterim, Aquiles vence a luta; Mémnon está morto… Morto como a metafísica; morto como uma pedra; morto, enfim, como Antíloco.

Ah, triste Aurora… O filho, que era vida e amor, agora queria apenas se putrefazer… Mater dolorosa – mãe que sofre –, que desanima, entristece-se, mas não desiste. A esperança de uma mãe é o que há de mais forte no mundo. Aurora haveria de fazer algo. Ela reúne em um só pacote todas as esperanças maternas e vai implorar a Zeus pelo filho já morto. Ele, Zeus, quem segundo a mitologia grega – que senão míope, por certo estrábica o é em assuntos divinos: vê vários deuses – é o mestre absoluto dos deuses, do mundo e dos homens, resolve pesar as almas e os destinos dos que há pouco combatiam. Aurora vê, quase que imperceptivelmente, um quê de brilho nos olhos de Zeus. Há esperança! É o que não deixava de pensar. Mantinha-se ansiosa…

Zeus, enfim, conclui que a alma de Mémnon é mais valiosa… Haveria, portanto, de fazer algo pelo filho de Aurora. De fato, fê-lo: prometeu à deusa a imortalidade do seu filho. Aurora transborda-se e, de tanta alegria, quase não cabe mais em si. Seu filho reviverá. Sai, desta feita, em busca do cadáver de Mémnon e, ao chorar de emoção durante o caminho, suas lágrimas caem no campo e se tornam os orvalhos que se vêem nas oiticicas do sertão, pelas manhãs. É isso! O orvalho, que passa por tantos de maneira tão despercebida, tem uma grande história, mesmo que fictícia. Ele é formado pelas lágrimas de Aurora que são quotidianamente derramadas nas plantas do sertão. Assim não deixaria de ser após aquela noite, na manhãzinha seguinte, quando vaqueiros acordariam uns e outros para o leite no curral. Ainda era tardinha, contudo, quase noite, restava apenas esperar a passagem das trevas, para que fosse obtido o aurorescer do dia, da vida.
Obs: A Parte II foi postada no dia 22.09.2009

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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