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(Mensagem de Dom Sebastião Armando, por ocasião do evento inaugural da clínica “Olhar – Oftalmologia Especializada”, em Maceió, Alagoas, na noite de 05 deste, associação médica que reúne quatro colegas mulheres e um homem)
Antes de tudo, grato pelo “arriscado” convite que me fazem, pois quase não nos conhecemos e, mesmo assim, Vocês se fiaram no testemunho de Aninha (Ana Gameleira), sua colega e minha sobrinha.
É frequente, quando se inicia novo empreendimento, desejarmos fazer referência a Deus, pois muitos e muitas de nós cremos que seja Ele a fonte última da vida e da ação humanas. É conhecido costume em nossa cultura católica convidar algum padre para “dar uma bênção”. Poderíamos, porém, compreender a bênção a partir de um vago sentimento quase supersticioso, motivado por uma religiosidade ainda meio infantil que vê na bênção uma maneira de pedir e garantir proteção e buscar refúgio e confirmação em poderes superiores, celestiais. As obras de Deus, porém, que são os seres de Sua criação e as obras que realiza por nossas próprias mãos, já por isso mesmo são abençoadas, são santas e já carregam consigo o beneplácito e a aprovação divina. Por isso há outra maneira de compreender a “bênção”. E esta, penso eu, deve caber perfeitamente entre nós, que somos pessoas, em sua maioria, de nível universitário.
Abençoar, bendizer, bênção, benzer, bendito… todas palavras derivadas da antiga língua latina, derivadas do verbo “benedicere” (dizer bem) e do adjetivo “benedictus” (bem dito). Assim, pela raiz da palavra, “benzer” é “bem dizer”, “dizer bem” de Deus (quando cremos n’Ele como realidade pessoal), ou dizer bem da Vida, esta fonte que nos inspira projetos, relações e ações positivas e proveitosas. Escutemos com atenção a leitura do Salmo 127.
Permitam-me agora que lhes deixe três breves mensagens, para tentar “bem dizer” nesta ocasião tão especial. Quero corresponder à ousadia do convite de Vocês com a ousadia de lhes trazer três “conselhos”. Dizem que, quando a gente envelhece, adquire o direito de dar conselhos. Embora a tradição popular, com sua sabedoria, desconfie disso e diga em conhecido e gracioso provérbio que “cuspe, flor de cajueiro e conselho de padre é o que mais se perde”:
1. Especialistas em Física, Química, Astronomia, Paleontologia, Ecologia, por exemplo, têm-se mostrado cheios de encantamento ao contemplar os processos mediante os quais o universo tem origem, se mantém e evolui. Este imenso conjunto parece fruto do acaso, afinal quem consegue apalpar a causa última da realidade na qual estamos mergulhados(as)? No entanto, tudo parece articulado por surpreendente racionalidade, como se uma “mente” transcendente e, ao mesmo tempo, intrínseca às coisas, dirigisse o projeto da sofisticada obra de engenharia cósmica… Chega-se ao ponto de as múltiplas combinações de energia, formadoras da matéria, chegarem ao nível de produzir esta maravilha que é o espírito humano. E vocês cuidam justamente dos olhos, esse órgão corporal, que são as “janelas da alma”. Na verdade, é em nosso corpo físico, material, portanto, que se espalha, prodigiosamente, nossa dimensão espiritual. A Bíblia não sabe como falar dessa maravilha, pois nela deve haver um mistério inefável. O grande Santo Agostinho, no século IV d.C., diz que o universo é o primeiro livro pelo qual Deus nos entrega Sua Palavra (cf. Gênesis, capítulo primeiro). Nas Sagradas Escrituras, vemos que se percebe o prodígio, mas não se consegue descrevê-lo, só é possível referir-se a ele mediante imagens poéticas. É assim que Deus é retratado como artesão, um oleiro que imprime no barro da terra sua própria “imagem e semelhança”. E, ao contemplar a obra saída de Suas mãos, cheio de entusiasmo, exclama: “É muito bonito!” (Na língua hebraica, “bonito” e “bom” são a mesma palavra, o que revela a intuição de que não pode haver verdadeira beleza sem bondade…). Vocês, médicas e médicos, têm por vocação ajudar a manter, restaurar e salvar essa divina obra de arte que é o ser humano; vocês participam da arte divina, como co-criadores(as). Por isso, na tradição, foram tidos como sacerdotes e sacerdotisas, pessoas dedicadas ao serviço divino, a saber, servir a Deus, fonte da Vida, e, mais importante ainda, servir como Deus. Nunca permitam que se perca em Vocês a consciência do sublime que é sua missão! Não tem “preço”!
2. Segundo conselho. Vocês se conheceram, criaram relações entre si, sonharam em conjunto com um projeto coletivo e hoje celebram com alegria sua realização, a sede da associação está pronta: relações, projeto e ação coletivos. Desejo (ousaria dizer em nome de todos e todas que estamos aqui: desejamos) que façam de tudo para que dê certo. Desta maneira, terão a felicidade de espelhar ainda mais o que é Deus – “Deus é amor” (1Jo 4, 8), é um polo transcendente de relações, é o princípio mais profundo de tudo o que é coletivo. A fé cristã, desde suas origens, apregoa que Deus não é solidão, mas relações, é por isso que falamos de Deus como “unidade em pluralidade”: falamos de Pai como a Fonte última de tudo; de Filho como o espelho e reflexo da Fonte; e do Espírito como eterno entrelaçamento do Amor. Mas só é capaz de amar, isto é, fazer “comunidade” nos vários âmbitos da vida, Vocês sabem bem disto, quem é capaz de ir além de si mesmo(a), quem tem maturidade para não se afogar no narcisismo que é sempre adoração de si e das próprias obras, idolatria. Façam tudo para que este projeto dê certo! Não seja apenas um ajuntamento de profissionais que se somam lado a lado. Articulem-se, completem-se, sejam comunidade de pesquisa, vivam em intercâmbio e mostrem que é realmente possível estabelecer, manter e testemunhar um estilo coletivo de vida e trabalho. Testemunho particularmente importante nesta nossa sociedade exacerbadamente marcada pelo individualismo e egoísmo. Sejam vigilantes para que aspectos de relacionamentos, de organização e financeiros não separem vocês, como se dá tantas vezes, por força da imaturidade e da criancice das pessoas! Que seja como num casamento: os problemas têm de ser clara e lealmente discutidos e enfrentados, e nunca jogados pra debaixo do tapete, do contrário se vingarão ao explodir com violência e virulência!
3.Finalmente, que este projeto de medicina de grupo, coletivo, portanto, (ousaria dizer amoroso, porque exigirá o sacrifício de jogar-se para além de si mesmo(a) em prol de conjunto maior, transborde daqui para ambientes profissionais onde Vocês também trabalham, alcance as associações do segmento a que pertencem, associações profissionais e de classe, e repercuta politicamente na sociedade onde, sabemos, a saúde ainda é um direito básico a ser conquistado até mesmo por setores da classe média, mas sobretudo pela população pobre, até hoje tão maltratada e desassistida. Desejo intensamente que aqui se acenda um novo foco – foco quer dizer fogo – de positivo relacionamento e intercâmbio humano, de competência profissional e de atuação política, que ajude este país a ter vergonha e não deixar que também a medicina , o cuidado com a vida humana, se degrade a uma mercadoria a mais entre tantas outras, nas perversas relações capitalistas. Imaginemos os segmentos da Medicina, da Enfermagem, da Administração hospitalar, da Nutrição, da Fisioterapia, da Educação Física, do Serviço Social, enfim, todos os setores que cuidam das saúde e do bem estar do ser humano… unidos para estabelecer plataforma comum de luta por uma saúde de qualidade: que imenso e “tremendo” (literalmente: de fazer tremer) poder seriam vocês a serviço da transformação do país! Com tal multidão de companheiros e companheiras, na batalha por uma sociedade mais justa, mais solidária e, por que não dizer, mais divina.
Sucesso no trabalho em grupo! Na competência profissional! Na atuação política de Vocês! Que nesta noite, ao “bem dizer” das obras de Deus, que somos nós e nossas próprias obras de amor, Ele se digne “abençoar-nos”, agora e sobretudo mais adiante, isto é, Ele, fonte da Vida, tenha motivos para “dizer bem” de nós, sobretudo “dizer bem” de Vocês cinco! Pleno sucesso nesta obra”, que seja particularmente obra de amor entre Vocês e de Vocês possa espalhar-se em favor da vida nesta sociedade tão tristemente desfigurada! Assim seja!
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
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