Frei Betto 14 de outubro de 2009

 

Como sublinha Bartolomeu Campos de Queiros, tudo que existe – esta publicação, o computador, a cadeira em que me sento, o cômodo no qual me encontro – foi fantasia na mente humana antes de se tornar realidade. Daí a força da literatura de ficção. Também ela foi fantasia na mente do autor e remete o leitor a uma realidade onírica que lhe possibilita encarar a vida com outros olhos. A fantasia impulsiona todos os nossos gestos, atitudes e opções.

A ficção funciona como um espelho que faz o leitor transcender a situação em que se encontra. O texto desvela o contexto e impregna o leitor de pretextos, de motivações que o enlevam, aquele entusiasmo de que falavam os gregos antigos, estar possuído de deuses, de energias anímicas que nos devolvem ao melhor de nós mesmos.

Toda ficção, narrativa ou poética, é des-cobrimento, revelação. Somos múltiplos e, ao ler, uma de nossas identidades emerge por força do encantamento suscitado pela quintessência da obra ficcional: a estética.

A literatura ficcional não tem que ser de esquerda ou de direita. Tem que ser bela. Fazer da ficção um palanque de causas é aprisioná-la numa camisa de força, transformando-a num espelho que não reflete o leitor, reflete o autor e seu proselitismo.

A ficção não tem de ser engajada, o escritor sim, tem o dever ético de se comprometer com a defesa dos direitos humanos neste mundo tão conflitivo e desigual.

No prólogo do evangelho de João, um dos textos mais poéticos da Bíblia, só comparável ao Cântico dos Cânticos, diz que “o Verbo se fez carne”. Na arte literária a carne – a criatividade do autor – se faz verbo. Instaura a palavra, que organiza o caos.

No Gênesis, Javé cria o Universo pelo poder da palavra. Ele se faz palavra, manifestação que nos remete, como na obra ficcional, à transcendência (o autor sobrepassa a cotidianeidade ou lhe imprime novo caráter), à transparência (o texto reflete o que está contido nas entrelinhas), a profundência (a narrativa ou o poema nos convida a algo mais profundo do que percebemos na superfície da realidade).

Ler ficção é uma experiência extática – estar em si e fora de si. Somos alçados ao imaginário, induzidos à experiência da catarse, de modo a oxigenar a nossa psiquê. A estética nos imprime um novo modo de encarar as coisas. Como lembra Mário Benedetti, a literatura não muda o mundo, mas sim as pessoas. E as pessoas mudam o mundo.

A estética literária nos envia ao não dito, à esfera do desejo, suscitando-nos sonhos, projetos, utopias, do encontro com o príncipe encantado (Branca de Neve) ao reencontro amoroso com a opressiva figura do pai (A metamorfose, de Kafka, e Lavoura arcaica, de Raduan Nassar). Como assinala Aristóteles, a poética completa o que falta à natureza e à vida. A arte não se satisfaz com o estado factual do ser. Convida-nos à diferença, à dessemelhança, ao tornar-se.

Suscitar em crianças e jovens o hábito da leitura é livrá-los da vida rasa, superficial, fútil, e educá-los no diálogo frequente com personagens, relatos e símbolos (a poesia) que haverão de dilatar neles a virtude da alteridade, de uma relação mais humana consigo mesmo, com o próximo, com a natureza e, quiçá, com Deus.

Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

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