4 de novembro de 2009
teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Dizem que as crianças hoje já nascem sabendo. Que não são mais como antes, imobilizadas em cueiros, proibidas de tomar banho até o cordão umbilical cair, de olhinhos fechados até o final do primeiro mês de vida, etc. Dizem que os bebês hoje já nascem ligados em tudo e não são mais aqueles serezinhos meio à parte do mundo, que se moviam apenas entre o seio túrgido de leite e o escurinho do berço.
Foi essa a sensação que tive ao lançar meu primeiro olhar sobre Maria Antonia. Nasceu de olhos muito abertos, com expressão tão inteligente e concentrada, que parecia impossível serem verdadeiras as palavras da enfermeira, que insistia em dizer: “Ela não vê nada por agora. Só escuta.” Em todo caso, na dúvida, olhei bem para ela também. E acho que naquele primeiro momento já estabelecemos uma relação viva e verdadeira entre avó e neta.
Os olhos de Maria Antonia já nasceram perscrutadores, curiosos, observadores, ternos, pensativos. E pensei no Evangelho, quando Jesus diz que os olhos são a lâmpada do corpo. No caso dela, são sem dúvida a luz que revela seu rostinho adorável, encimado por uma quantidade de cabelos escuros como nunca vi em bebê algum. Olhando no fundo daqueles olhos, sentia a vida outra vez brotando nova e fresca em nossa família. Foi uma longa contemplação a que fiz na manhã da última sexta feira, 15 de maio, através do vidro do berçário, quando seu pai, meu filho, a trouxe nos braços e a apresentou, emocionado e cheio de orgulho, aos avós ansiosos. E eu fui então admitida à visão de seus olhos grandes, sérios e profundos.
O nascimento de Maria Antonia traz de novo o convite constante e insistente a honrar a vida. Ao lado dela, choravam, olhavam, mexiam braços e pernas dezenas de outros bebês, que eram diligentemente lavados, tratados, vestidos e cobertos pelas enfermeiras que depois os levavam para as mães que os esperavam com os seios repletos de leite e de amor. Era impossível não se sentir comovido vendo aquele movimento da vida que recebia os primeiros cuidados e iniciava seu longo e belo caminho em direção ao crescimento e à plenitude. Era impossível não crer no Amor que ama primeiro e sai de si para criar, sempre único, sempre original, sempre irrepetível.
Nenhuma criança no mundo tem os olhos de Maria Antonia. Nenhuma outra tem os cabelos como ela. Ali no berçário dormiam, choravam e esperneavam várias criações únicas saídas da inventividade infinita do Criador. Nenhuma era igual à outra. Nada de fabricação em série. Mas a imagem e semelhança feita originalidade singular e sem igual em cada um, em cada uma.
Os poucos dias que já se seguem a seu nascimento fazem a família inteira mover-se em torno à nova vida que habita conosco como em respeitoso ritual. Todos ficamos pendentes de seu choro, de seus suspiros. Toda a casa gira em torno dela e do desejo de satisfazer suas necessidades, sua fome, seu desejo de colo, de contato, de atenção. As noites nem sempre são dormidas, os dias nem sempre são tranqüilos. Não importa. Para honrar a vida, não há nada difícil, nenhum sacrifício exagerado. Pois a vida é santa.
Maria Antonia trabalhou e esforçou-se muito para nascer. Agora vem o mais importante: viver. Todos estamos aí para ajudá-la a desempenhar-se bem também nesta tarefa. Não será fácil. O mundo está mais para morte do que para vida. Não se respeita o que é frágil e precioso, mas apenas o que é brutal e violento. Corre-se atrás do que dá prestígio e poder e não do que cansa o corpo e plenifica o espírito na gratuidade da doação, do serviço amoroso, como é nutrir, proteger, cuidar, honrar a vida.
E, no entanto, a vida está aí. Teima em continuar surgindo, brotando. Empenha-se em manifestar-se com seus olhos abertos e sua fragilidade carente. Obstina-se em tentar ensinar a nossos soberbos corações que a única coisa que realmente importa é prestar-lhe atenção e carinho, e render culto e louvor a quem a criou, e reverenciá-la humildemente com lágrimas nos olhos e coração transbordando de afeto.
Tudo isso Maria Antonia me ensinou naquela contemplação de sexta feira 15 de maio quando trocamos olhares e selamos um pacto de amor entre neta e avó. Tomara que eu tenha aprendido. Ainda bem que ela estará aí para recordar-me a lição. Obrigada, querida!
Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape/
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