31 de outubro de 2011
Todo escritor é doente. Todo artista é doente. Todo filósofo é doente. Falo dos verdadeiros, que são pessoas para cujas sobrevivências é necessário mais do que outros precisam para simplesmente existir: aqueles precisam do inútil, do que não tem préstimo ou serventia quaisquer, como a arte, a literatura e a filosofia.
A arte é inútil. A literatura é inútil. A filosofia é inútil. Se a primeira faz pessoas verem a vida melhor, se a segunda faz pessoas passarem o tempo com alguma nobreza e se a terceira faz homens e mulheres se defrontarem com problemas de suas existências é que essas atividades estão sendo tomadas não como tais, mas como instrumentos de uma espécie de psicoterapia ocupacional. Arte enquanto arte, literatura enquanto literatura e filosofia enquanto filosofia não têm serventias, senão a de ocupar um vazio, um vácuo, uma lacuna que misteriosamente aparecem no coração de poucas pessoas: os artistas, os escritores e os filósofos.
Se eu não tivesse tanta preguiça de fazer entrevistas e de produzir as suas estatísticas, sairia por aí com uma prancheta perguntando a todo mundo se precisam do inútil para viver. Aposto que encontraria noventa e nove vírgula nove por cento de pessoas que não precisariam do que não tem serventia.
Do outro lado, na parcela insignificante da humanidade, estariam os doentes, para os quais é inevitável não se contentar com os limites impostos pela condição da humanidade. Eles precisam existir como humanos sonhadores. Se soubéssemos o que passa na cabeça do sonhador, teríamos até certo constrangimento de caminhar na rua, deixando claro que um jardim mal cuidado e um ar poluído bastam para a nossa sobrevivência.
Para a maioria de nós, basta o pão, a água e alguma distração eventual das coisas reais. Com isso, estamos felizes e vivemos, simplesmente. O artista precisa de mais e, quando consegue, logo vê que aquilo que conseguiu nada lhe trará senão, com muita sorte, alguma fidalguice, mas nunca alguma plenitude. O escritor tem a sua obra, mas não sabe como lidar com o que quis dizer e não disse.
O filósofo, como já o escreveram uns, é aquele que não sabe usar a linguagem: fica por aí, criando palavras em línguas mortas (o grego clássico é a preferida) para, depois, debruçar-se sobre o significado que pode ter uma palavra que simplesmente não existe e que ninguém a usa fora do espaço estranho que é criado pelas paredes desgastadas de uma sala de aula de um curso de filosofia.
Da perspectiva prática, a situação também é doentia, pois escrever é, na realidade, um verdadeiro tédio: é procedimento que muito se estende, quase nunca acaba e, quando pensamos que está terminado, é hora de jogar tudo fora e começar de novo, tal como somente ocorre com o que talvez seja o mais terrível de todos os sisifismos do mundo. Jamais um texto está pronto e nunca estará, mas aquelas horas dedicadas ao que não bem se sabe o que são não serão recuperadas. Escrever, nesses termos, é como montar quebra-cabeças ou comer cavaco chinês: apenas uma forma de passar o tempo, de ficar mais velho. Mesmo assim, o escritor, por mais que tente, não consegue deixar de escrever.
Há, ainda, o perigo da esquizofrenia acometer o artista, o escritor e o filósofo. Não raramente, verifica-se, em tais pessoas, sintomatologia que se manifesta em dissociações entre o que é real e o que é fictício. Muitos deles, inclusive, não são capazes de distinguir essas categorias, ou seja, de colocar de um lado o que pertence à realidade e, do outro, o que é próprio da ficção.
Talvez por isso essas pessoas insistam em tentar comunicar algo proveniente de um mundo particular, não acessível. É isso! Eles são autistas que escrevem e produzem arte para comunicar aos da terra as modas interessantes do mundo deles, mas, paradoxalmente, nunca conseguem, pois o limite entre o mundo de fora e o de dentro é mais alabirintado e confuso do que possamos imaginar.
De tudo, uma coisa é certa: o artista, o escritor e o filósofo produzem as suas obras para que possam, da perspectiva das suas próprias existências, sentir-se vivos e, em certo grau, livres de suas doenças. É, em resumo, a recorrente tentativa de cura impossível para uma deliberada manifestação de incompletude de si mesmo.
É tão triste a incompletude em quem nunca se sentirá pleno. Ninguém, talvez, devesse sentir necessidades que não tivesses uma finalidade prática, pois os que a sentem correm-se e se consomem. Melhor seria se todos, indistintamente, fôssemos como as plantas, aquelas bem rústicas, que nem de água muito precisam. Vivem e pronto: o resto é extravagância.
* Tassos Lycurgo é professor da UFRN
Obs: Obs: Imagem retirada do texto do autor em seu livro Variações do Indizível – Ensaios de Risco. Ilustração de Leander criada especialmente para o ensaio.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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