Bem se pode, com razoável grau de propriedade, afirmar que os homens, em essência, são como solidões individuais que, em conjunto, tributam os pesos dos dias à completa alienação das próprias existências. Edvard Münch, com seu “Spring Evening in Karl-Johann Street, Oslo”, em que são pintadas pessoas com faces planas e pálidas das quais saem, mal definidos, pares olhos perdidos e esbugalhados, mostra a inalterabilidade que trespassa a essência de cada homem. Além disso, nota-se ainda que, à frente do espanto, os referido olhos mais demonstram a pasmaceira, a indolência, o tédio que o mundo provoca no homem. Eis por que, diante do espetáculo, faz sentido perguntar-se sobre o que há de estimável e importante no ser humano, sobre o que faz dele um projeto que não fracassou.
Em primeira análise, não há como se fugir da assertiva de que, do ponto de vista do palpável, o homem, por melhor que um de seus exemplares venha a ser, visto de uma perspectiva ampla, é desprezível. Ora, ao acordar, cada ser humano pode, diante do espelho, constatar o efeito de sua condenação: o tempo de vida de seu corpo, que é carne, como se fosse a quantidade de areia no vaso superior de uma enorme ampulheta, abrevia-se, invariavelmente. Dessa forma, diz-se que o corpo, ao qual se pode referir pelo hebraico “basar”, que significa carne, morre a cada dia, consagrando ao homem, assim, o estigma da efemeridade, da transitoriedade e da finitude. Pode-se, contudo, estabelecer que, à frente do homem ser finito, ele é um processo, pois “toda carne envelhece como o feno e como as folhas que crescem sobre as árvores verdes. Umas folhas nascem e outras caem. Assim é a geração de carne e de sangue: uma fenece, e outra nasce” (Eclesiástico 14, 18-19). Ei-lo, portanto, o homem: um processo, que é finito, terreno, profano, mundano e temporal.
Há na humanidade, contudo, algo que a faz paradoxal: algumas de suas manifestações têm por intuito a tarefa de fazer do homem algo que negue as próprias características, tentando livrá-lo, assim, das cicatrizes que a sua condição, inevitavelmente, coloca-lhe impregnadas no ser. É, em compêndio, o surgimento do homem que tenta superar a condição humana, tornando-se, desta feita, algo que o torne maior, melhor. Pode-se, assim, dizer que a empreitada de que se fala é a de negar as características humanas, entre as quais, privilegiam-se as que já se citaram, quais sejam, a de ser finito, terreno, profano, mundano e temporal. Ao negá-las, o homem estará buscando o que é infinito, espiritual, sagrado, incorpóreo e intemporal, ou seja, eterno, de sorte que se pode afirmar que a busca do homem pela superação de sua condição humana é, em suma, a busca pelas qualidades de Deus.
Deus, não só biblicamente falando, mas também na perspectiva histórica, é tido como eterno, como intemporal e, sendo assim, é dado como independente de tudo o que existe, já que é absoluto. É bem verdade que a plenitude do conceito de Deus coloca tal termo, fatalmente, em dificuldades de definição. Moisés, como se conta, ao perguntar a Deus o que deveria responder quando lhe perguntassem qual era o nome da Divindade, recebeu a seguinte resposta: “Eu sou aquele que sou” (Êxodo 3, 13-14), não podendo, assim, ser conceituado, pois qualquer tentativa de conceituação lhe tiraria a plenitude que jaz no que Ele é.
O importante a se notar neste ponto é que o projeto de superação humana encontra sua dificuldade natural: de um lado, há o homem, mais profano do que nunca, do outro, Deus, o que há de mais sagrado. Entre ambos, intransponível, eis que surge o despenhadeiro que separa os contrário, o temporal do eterno, o finito do infinito, o mundano do espiritual, enfim, o homem de Deus. Surge, então, a questão essencial para a realização do projeto humano, que é a de como seria possível ultrapassar tal precipício, de como seria possível ligar o homem a Deus. A resposta, a ponte entre homem e Deus, em ninguém mais poderia surgir senão em um ser que reunisse, em si mesmo, todas as características humanas e divinas, em um ser que fosse, ao mesmo tempo, homem e Deus. Eis um dos maiores mistérios do cristianismo: homem e Deus, com todas as suas características não apenas díspares, mas também inconciliáveis, são reunidos em um só ser: Jesus Cristo. É aqui, ao que me parece, que há o caminho para a superação de nossa mesquinhez, que há a ponte para unir o que somos e aquilo que está além de nós.