24 de novembro de 2009
Um dos mais lúcidos encontros acontecidos durante a estada dos bispos de São Paulo em Roma, para a visita ad limina, foi o diálogo com o Cardeal Kasper, presidente do Conselho para a Unidade dos cristãos.
Ele acabava de retornar da Bielorússia, onde tinha participado de um encontro com representantes da Igreja Ortodoxa. Expressou sua convicção de que a unidade com os ortodoxos irá acontecendo progressivamente, na medida em que for sendo realizada a reaproximação com eles, através de sinais de apreço mútuo, de respeito por suas tradições e de encontros para o convívio e o diálogo construtivo.
Assim como a separação entre a Igreja Oriental e a Igreja Ocidental, falando-se em termos de Europa, foi se estabelecendo lentamente, através de um distanciamento que poderia ter sido superado, assim a plena comunhão entre ambas precisará ser construída através de um lento processo de reaproximação, em que as diferenças poderão ser relativizadas, enquanto desaparecem as desconfianças, e a unidade vai se fortalecendo.
Ele chamou a atenção para a importância de superar preconceitos históricos, que ainda podem estar presentes. Eles alimentam ressentimentos que aos poucos precisam ser desfeitos por demonstração de mútua estima. Assim se fortalece a disposição de consolidar uma nova postura de respeito e de conhecimento mútuo, que abre caminho para a plena comunhão entre as duas grandes tradições eclesiais, que assim poderia se tornar referência para a tarefa mais complexa da superação das divisões acontecidas na Igreja Ocidental, fruto tanto da reforma protestante como do neopentecostalismo.
Para isto vale a pena o esforço de identificar as raízes desses preconceitos históricos, que parecia terem já desaparecido, mas que ainda continuam. Ele citou, por exemplo, a susceptibilidade ainda existente na Igreja Ortodoxa com referência aos episódios acontecidos em Constantinopla, por ocasião das cruzadas na idade média, quando os exércitos ocidentais passaram pela antiga capital do império romano do oriente. Eles recordam estes episódios como se fossem ainda recentes, quando na verdade já passaram tantos séculos, e os atores de hoje não tem mais nada a ver com eles.
Isto faz lembrar o testemunho de um dos membros do conselho para a unidade dos cristãos, que certa vez passou pela Grécia, para se encontrar com representantes da Igreja Ortodoxa daquele país. Como ele entendia grego, pôde escutar a conversa do povo, que perguntava ao padre ortodoxo quem era o visitante. O diálogo que ele ouviu foi surpreendente. O padre ortodoxo explicou ao povo que o visitante era enviado do Papa. O povo quis saber então quem é o Papa. Aí o padre ortodoxo explicou que o Papa era aquele que tinha mandado as tropas do seu exército invadir Constantinopla! De modo que em pleno terceiro milênio o Papa ainda levava a culpa da destruição de Constantinopla.
Fatos como este fazem lembrar os disparates ainda freqüentes de professores de história, nas escolas de hoje, que escondem sua ignorância e manifestam seus preconceitos com o seu esporte preferido de acusar a Igreja de hoje, atribuindo-lhe a responsabilidade por fatos acontecidos em outros contextos históricos, sobretudo aqueles relativos à inquisição na idade média.
Cada acontecimento precisa ser situado no seu tempo, e ser interpretado à luz das circunstâncias que o tornaram possível. Isto tanto mais se torna importante quando os acontecimentos fazem parte da história de uma instituição veterana, que ainda existe, como a Igreja, e que carrega o peso dos séculos que ela conseguiu atravessar. Ninguém se queixa, por exemplo, da destruição de Roma, que também aconteceu, mas hoje não existe ninguém que chora por ela. Mas a Igreja conservou sua identidade ao longo dos séculos. Se queremos interpretar sua história, precisamos situar os acontecimentos em sua devida época. Caso contrário embarcamos na canoa furada dos preconceitos, que ainda são espalhados por aí, no mercado livre da ignorância e do despreparo profissional de professores que preferem o exercício cômodo das acusações ao trabalho árduo da pesquisa científica.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.
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