Fico imaginando uma situação de vexame puro. Exponha-a: chego ao teatro onde uma orquestra sinfônica vai se apresentar. Sento-me e fico a espera do início do espetáculo. Então, alguém quer falar comigo fora do circuito do auditório. A notícia que me dão é terrível: o maestro não pode comparecer. Eu estou sendo convocado para reger a orquestra. Eu, portanto, que nunca regi orquestra nenhuma, nem da matéria tenho a menor noção do que devo fazer. Não há como recuar. Parece um pesadelo.
Aí vem à mente o escorrego na minha estréia na Filarmônica Nossa Senhora da Conceição, em Itabaiana. Eu, na trompa, mais precisamente, na segunda trompa. Antonio Melo, óculos caindo no nariz, saxofone tenor pendurado no pescoço, olha para todos os músicos. Bate duas vezes com um pedaço de madeira na sua estante. Era o sinal. A banda começa a tocar. De repente, eu me perco. Paro de tocar. A emoção, talvez, da estréia. Não sei bem. Arnaldo Silva, na primeira trompa, também para. Eu entro de repente, fora do compasso, na tentativa de salvar a pátria. Antonio Melo capta meu som fora do esquadro. Corre para fazer o papel da trompa. Depois, bem, depois aprendi a entrar no compasso certo.
Mas, a situação de dirigir, na falta do maestro, uma orquestra sinfônica, não acontecerá nunca. Era só uma maneira de abordar um problema, traduzido no comando de algo que o titular não entende. Exemplo: o Ministro da Pesca que nunca viu um anzol. Outro: o Ministro da Educação que não sabe nem o que é a lei de diretrizes e bases da educação nacional. Mais outro: o diretor-presidente do Detran que não conhece o Código de Trânsito Nacional. São fatos reais e corriqueiros, situações que a gente vê no dia a dia, em todas as esferas, pessoas erradas em cargos e funções tão importantes, de modo que, em lugar de dirigirem, em verdade, vão ser dirigidos, ou seja, assine aqui, assine ali, etc. e etc.
Até no Judiciário, em velhas épocas, quando alguns candidatos, que não chegariam nem na calçada de um fórum, eram aprovados em concurso para a magistratura, sem noção exata de nada, absolutamente nada, recebiam de presente a aprovação do concurso. Costumo dizer que sabiam de Direito o que sei de dialetos gregos. Ou seja, não sabiam nada. Mas, por força do pistolão, eram feitos juízes de direito, imagine, e lá ia a comarca judicar. Uma precatória que chegasse, não sabiam onde colocar o primeiro despacho. Não é nem o despacho. É o local devido para tanto.
Um desses, conheci, a pose maior que a Serra [de Itabaiana]. Um dia, audiência em processo de divórcio consensual. O marido batia na mulher. Queria se separar dela e ela, por apanhar, queria se ver livre dele. O juiz, o tal, ouviu um, ouviu o outro, e, erguendo a voz, o dedo levantado, trouxe um pouco de princípios religiosos para o caso, bom católico que era, apregoando: O que Deus uniu, o homem não separa. E daí, ordenou os dois: voltem para sua casa. Vão viver juntos. O casal obedeceu, que fazer, o juiz mandando, quem era doido desobedecer. Quinze dias depois, a esposa teve acesso ao magistrado. Trazia o olho preto de um murro recebido do marido. Veja, doutor, o que ele me fez. Não dá certo viver com ele.
O que o juiz teria feito, não se sabe. Não fui informado, mas registro o fato como um exemplo do apadrinhamento antigo que permitia alguém, totalmente despreparado, exercer uma atividade da qual nada não tinha a menor noção de como devia proceder. De qualquer forma, volto à regência da orquestra sinfônica: se fosse escalado, faria como aquele médico, cirurgião, que, ante o paciente que deveria ser operado, ele, sem saber por onde começar, dizia que estava sem os óculos. Procurassem, com urgência, o outro cirurgião do hospital. (08 de julho de 2017)
Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.