22 de dezembro de 2009
teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Foi Leonardo Boff quem me anunciou, com voz embargada, há exatos vinte anos: «Mataram Ellacuria». Custei a realizar o que me dizia. Pouco a pouco, saí de meu espanto e ouvi minha voz perguntar, longe e apesar de mim mesma: «E Jon Sobrino?»
Leonardo me contou que escapara por estar na Tailândia, dando um curso que lhe havia pedido. Senti alívio de saber poupado o que era mais amigo, mais próximo, embora com enorme perplexidade diante do acontecido. Naquela ocasião, conhecia pouco sobre Ellacuria. Só lembrava de sua tremenda simpatia e brilhante inteligência quando o vira rapidamente em Madri, aonde fora acompanhando Lina Boff, colega de teologia e irmã de Leonardo, que iria participar de um programa na TV espanhola. Encantou-me aquele basco de sorriso fino e tiradas brilhantes, que falava com paixão e exatidão sobre a opção pelos pobres e a teologia da libertação.
Corria o ano de 1989 e aquele era o assunto em pauta. A Teologia da Libertação era discutida e controvertida, mas chamava atenção e atraía os olhares. E Ellacuria, como reitor da Universidade Católica de El Salvador, não perdia oportunidade de viajar e ocupar todas as tribunas que se apresentavam para falar da grande prioridade em que consistia, naquele momento, a libertação de todos osoprimidos do mundo. Lembrava-me do grande banner que vira com sua foto, microfone na mão e gesto inflamado com o braço levantado, dizendo a célebre frase: “É preciso reverter a história e lançá-la em outra direção.”
Com sua morte, vieram à tona muitas outras grandes e importantes coisas sobre ele: grande filósofo, maior especialista no pensamento de Zubiri (famoso filósofo espanhol) em todo o mundo; reitor da UCA; presença marcante em El Salvador, país pequeno e trituradopor cruel ditadura, com o povo em extrema pobreza, submetido a esmagadoras forças de opressão; interlocutor privilegiado de Monsenhor Romero, o grande bispo, mártir, assassinado nove anos antes, enquanto celebrava a Eucaristia.
Agora ele jazia morto, com seus outros seis companheiros, a senhora que trabalhava na residência jesuíta e sua jovem filha de 16 anos. Depois de torturados, foram todos mortos e encontrados horas depois no jardim da casa. Jon Sobrino, de longe, seria avisado do ocorrido, transformando-se em perpétua testemunha de um crime do qual também teria sido vítima se ali estivesse.
Condenado a viver para sempre com o desconforto dos sobreviventes, passaria o resto de seus dias dando testemunho de seus irmãos, sem deixar que sua memória caísse no esquecimento, assim como a de Monsenhor Romero.
Ellacuria, basco de nascimento, salvadorenho de nacionalidade, e quase todos os outros jesuítas assassinados naquela noite sabiam o risco que corriam. Estavam conscientes dos perigos que comporta o seguimento radical de Jesus de Nazaré quando é levado a sério e à risca, sobretudo naquilo que diz respeito à luta contra as injustiças de todo tipo. Cada vez que viajava, Ellacuria era avisado, de uma ou de outra maneira, que voltar a El Salvador implicava risco de vida. Desta vez, sobretudo, o clima no país era quente e inseguro. Muitos o aconselharam a não voltar.
Voltou. Voltou porque acreditava na missão que assumira mais do que na própria vida. Voltou porque dar brilhantes conferências sobre filosofia na Europa e alhures era algo que fazia com grande competência, mas não dava o sentido principal de sua vida. Voltou porque era um homem consagrado a Deus e aos outros, e tinha uma aliança de vida e destino com aquele povo ao qual servia.
À sua espera estavam as armas e as balas dos assassinos que entraram na residência de noite, encobertos pela escuridão. Sua boca foi calada, mas sua vida nunca foi tão eloquente e inspiradora. Tal como escreveu um companheiro jesuíta sobre sua morte: «Querido Ellacu, agora sim, acreditamos em você, ao te ver assim, abatido e caído ao chão como Jesus. Perdão por havermos dito que você falava a partir do ar condicionado da UCA.”
Vinte anos depois, o crime bárbaro que resultou no martírio dos seis jesuítas e das duas leigas colaboradoras da residência continua impune. Todos os esforços de apuração ainda não conseguiram trazer à luz as responsabilidades e punir os culpados. O sangue dos mártires, no entanto, fala mais alto e ensina ao mundo para que serve a Universidade de confissão cristã. Para fazer crescer o saber e o conhecimento, sim. Mas também e inseparavelmente para lutar com todas as forças, até o dom da própria vida, para que a história seja revertida e lançada em outra direção. Ignácio Ellacuria e seus companheiros estão vivos em Deus e iluminam essa historia repleta de obscuridades, mas que pode ser história de salvação. Oxalá continuem vivos também e não menos em nossas memórias e em nossas vidas.
Autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape
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