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Mesmo quando o “melhor” espermatozoide, dentre os milhões ejaculados, encontra “o desejado” óvulo extrusado (o também “melhor” de dezenas de folículos desenvolvidos em cada ciclo ovulatório) são frequentes os erros incompatíveis com a evolução da gestação acarretando inúmeros abortos (clínicos ou imperceptíveis). São tão pouco incomuns que a cultura de alguns países “recomenda” o não compartilhamento social do “estado especial” da mulher antes da 12ª semana da gravidez. E o embrião que consegue ultrapassar este período crítico ainda pode vir a apresentar má-formação ou contrair infecções com graves repercussões (ex: Síndrome Congênita do Zika) fortalecendo a visão de que, apesar de ser natural e sublime, o ciclo grávido puerperal é um período de vulnerabilidade muito longe da perfeição e todo cuidado se faz necessário. Especificamente em relação às alterações anatômicas fetais, cirurgias durante a gestação (a “céu aberto” ou laparoscópicas) vêm sendo realizadas, desde 1981, para o tratamento de más-formações incompatíveis com a vida (intrauterina ou pós nascimento) ou naquelas que podem comprometer seriamente a saúde ou qualidade de vida do futuro nascituro. Atualmente, as indicações cirúrgicas mais frequentes incluem a obstrução do trato urinário, a síndrome de transfusão feto-fetal (em alguns casos de gemelares), a mielomeningocele (forma severa de espinha bífida), a hérnia diafragmática congênita, específicas anormalidades pulmonares (císticas) e cardíacas, a brida amniótica (quando a bolsa d’água “aprisiona” e pode “amputar” parte do feto) e os tumores da coluna sacra (teratoma) ou do pescoço (quando comprimem a traqueia). Os resultados mais auspiciosos são os do tratamento da mielomeningocele e os da transfusão feto-fetal, mas os riscos ainda são altos, tanto para mãe quanto para o feto. Entretanto, o recente caso da pequena Lynlee Boemer merece comemorações especiais, pois ela foi retirada do útero na 23ª semana de gestação, com apenas 530 gramas, submetida à exérese de grande tumor sacrococcígeo, recolocada na barriga de sua mãe e, após seu “segundo nascimento” (na trigésima sexta semana de gestação), se encontra (já com 4 meses de vida) bem e saudável. Sem dúvida, esta conquista da Arte do Curar e do Cuidar incrementa discussões bioéticas, incluindo as polêmicas relacionadas ao estatuto ético-jurídico do embrião e aos direitos do feto. Além disso, o ocorrido com Lynlee oportuniza reflexão crítica sobre uma passagem do Livro de Eclesiastes, texto sapiencial encontrado tanto na Bíblia Cristã quanto Judaica que, em seu capítulo 7, versículo 13, ressalta: “Atenta para a obra de Deus; porque quem pode endireitar o que ele fez torto?”. Bem, o caso aqui relatado, um verdadeiro “milagre laico”, reforça a importância de não se ter uma interpretação fundamentalista e literal dos textos bíblicos. Ou, pelo menos, de sermos cautelosos na sua exegese, pois graças ao livre arbítrio para exercermos nossa autonomia intelectual e inteligência fomos capazes de desenvolver uma Ciência e Tecnologia que, num estágio próximo do crescimento exponencial, estão cada vez mais capacitadas para resolver problemas que eram insolúveis e para ultrapassar barreiras antes intransponíveis. Que o Eterno nos ajude a utilizá-las apenas para o bem da humanidade!
Publicado no Diário de Pernambuco em 01/11/2016, página A2
Obs: O autor, Prof. Dr. Aurélio Molina, Ph.D pela University of Leeds (Inglaterra) é membro das Academias Pernambucanas de Ciências e de Medicina, professor da UPE e membro das Academias Pernambucanas de Ciências e de Medicina
*Ex-Secretário Executivo de Desenvolvimento da Educação de PE, Ex-Superintendente do Programa Ganhe o Mundo e Ex-Conselheiro Estadual de Educação.